Nùcleo de Teatro de Rua ELT

Saturday, March 24, 2007

Policia Interrompe apresentação teatral

Grupo Kabana

Por Anderson Gallan Ued

26/11/2006



Quando o grupo montou seu cenário e iniciou a apresentação, o guarda gritou:

“Parque municipal não é lugar para apresentações artísticas!”

E que ele estava baseado numa lei da década de cinqüenta, que proibia apresentações em parques e praças, afirmando que seu objetivo com a reprimenda era garantir a segurança dos cidadãos, pois pelo que se dizia antigamente em um espetáculo na rua o público subiu em arvores para assistir, provocando a queda de uma delas, o que resultou na morte de uma pessoa e vários feridos.
Mas ninguém queria saber de historias antigas então o grupo foi arrumando suas trouxas e caminhando em direção ao teatro Francisco Nunes, o mais interessante é que o público acompanhou os artistas.

De frente ao teatro a roda se formou novamente e o espetáculo ia recomeçar quando chegou o guarda e...

“Seu guarda agente apresenta e depois o senhor prende todo mundo!”

– Solicitou, gentilmente o pobre ator que estava na perna de pau.

E não é que o guarda atendeu seu pedido !!!
Assim que o espetáculo acabou, diante dos calorosos aplausos os atores foram todos detidos.

Você pode acreditar numa coisa dessa?
O publico ficou boquiaberto! A maioria dos presentes nunca tinha visto um espetáculo de teatro, inda mais assim na RUA.

Essa historia de fazer teatro na rua começou um pouco antes, quando chegaram a Belo Horizonte dois alemães – George Frescher e Kurt Bildstein – do teatro livre de Munique – trazidos para ministrar uma oficina de técnica de trabalho do ator, no teatro Marilia, no primeiro semestre de 1982.
A oficina trazia influencias grotowskianas, utilização de técnicas circenses e influencias do teatro musical brechtiano. Esses pontos marcaram definitivamente as pessoas que fizeram a oficina.

Mauro Lúcio, hoje diretor do teatro Kabana, declara que o que mais lhe impressionou foi à possibilidade de fazer teatro na rua.

Enquanto que Eduardo, do Galpão, diz que o fundamental para eles foi a técnica de treinamento do ator.

Hoje podemos constatar que os dois conseguiram dar continuidade aos desafios semeados. Mauro ao chegar em diamantina, fez realizar com outros atores uma leitura politizada de teatro de rua, montando um espetáculo que acompanhou a campanha do PT para governo estadual.
Eduardo junto com Teuda, Wanda e Toninho formaram o grupo Galpão fazendo vários espetáculos na rua.

O teatro de rua sempre esteve paralelo com a militância política, com movimentos estudantis e sindicatos. Nos paises ditos civilizados, EUA, Inglaterra, Dinamarca e etc. As praças são realmente publicas e a qualquer pessoa é dado o direito de se manifestar, seja pela musica, teatro ou simplesmente, fazer um piquenique com a família.

Vamos exercer nosso direto de se manifestar. Vamos as ruas reivindicar nossos direitos como Jovens e Estudantes que somos.

Quis trazer esse texto porque alem de mostrar um pouco do inicio da historia do teatro de rua no Brasil, temos a ligação com esses ideais políticos. O teatro de rua sempre esteve ligado a militância e a juventude. Fica aqui também registrado meu carrinho por Nélida Prado e Mauro Lucio do Teatro KABANA por ter, com bastante humildade, nos recebido e passado um pouco do seu vasto conhecimento. Muita Merda pra todos.

Derson Ued
DOOM Grupo de Teatro

Friday, March 23, 2007

Locômbia - Teatro de Andanzas

Beatriz Brooks na II Mostra Macuxi de Artes - SESC / RR

Marcelo Perez · Boa Vista (RR) · 1/12/2006 10:12 ·

Fonte: http://overmundo.com.br/overblog/noticia.php

"Eu sou Dionísio!"

Essa frase pronunciada por Téspis no século VI a.c., na Grécia, mexeu com a sociedade daquela época, pois nunca nenhum membro do coro grego havia se pronunciado sozinho. Naquele momento nascia o Teatro. E em plena rua.

Em Boa Vista não é difícil encontrarmos artistas experimentando as suas técnicas em sinais e praças da cidade, ousando como Téspis da Grécia Antiga. Por aqui existem grupos que uma vez ou outra resolvem realizar o teatro na rua, montam literalmente um palco, iluminação, som e celebram esta arte para todos que se interessarem em parar para assistir.

Mas o teatro de rua mesmo não é uma prática nesta cidade. Essa linguagem, muito bem trabalhada e conhecida por grupos como Tá na rua, do Rio de Janeiro e Grupo Galpão, de Minas Gerais, agora é que começa a despertar a classe teatral local.

Existe hoje na cidade apenas um grupo que desenvolve essa linguagem: Locômbia, Teatro de Andanzas. E curiosamente esse grupo é formado por dois colombianos e um brasileiro. Beatriz Brooks, 41, Orlando Moreno, 45, colombianos e Shanti Ram, com cinco anos, o único brasileiro do grupo e filho do casal.

Locômbia, Teatro de Andanzas é um grupo tradicionalmente familiar, que desde 1986 resolveu sair pelo mundo visitando diferentes culturas e sempre fazendo teatro. "É uma filosofia de vida", como diz Orlando. Eles já estiveram em lugares como México, Costa Rica, Canadá, Alemanha, Hungria, Slovenija, participaram de festivais na Suécia, Dinamarca, Índia, Moçambique, Nepal e toda a América Latina.

O grupo já mora há cinco anos no Brasil e já estão em processo adiantado para se naturalizarem no País. “Já tá na hora de fixar residência, criar uma estrutura segura para nosso filho”, como diz Orlando. Boa Vista é privilegiada em ter essa trupe de saltimbancos interessada em dividir experiências com artistas locais.

A relação deles com o Brasil surgiu em 1987 quando em turnê pela América do Sul, em um festival na Argentina, eles conheceram um grupo de teatro brasileiro. O Grupo de Teatro dos Afogados, de Hugo Hodas, um dançarino uruguaio que já morava em Brasília há muitos anos.

“Bom, já tínhamos contatos no Brasil, então fomos pra lá e paramos em Brasília através da nossa turnê. Intercambiamos com Hugo Hodas. Fizemos a oficina dele de dança e em troca oferecemos nosso trabalho de mímica e pantomima para os dançarinos dele”. Orlando disse que durante as viagens eles sempre encontravam um meio de intercambiar seus conhecimentos com a cultura local, o que tornava mais rico o seu trabalho.

Depois de Brasília foi a vez da cultura nordestina encantar o grupo. Eles não conheciam o frevo, que logo foi agregado ao repertório do grupo. “Nós, como viajeiros vamos integrando toda essa bagagem de técnicas ao nosso trabalho profissional. Sofremos muita influência, principalmente da música. Nosso espetáculo atual tem “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, o movimento da capoeira, a ginga, o Afro com o tambor e o batuque.”

Ao falar de patrocínio com ele, Orlando diz que “o grupo sempre foi autogestionário. Na Colômbia era muito difícil de encontrar apoio e sempre realizávamos as oficinas. A vontade mesmo do grupo era conhecer outras culturas. E íamos fazendo espetáculos passando os chapéus e muitas vezes os chapéus eram melhores que os cachês e íamos continuando nossa viagem. Recebíamos convite pra realizarmos oficinas em escolas, universidades e depois íamos pra outras cidades. Já estamos viajando assim há 20 anos. Quando se viaja é muito difícil de conseguir patrocínio, pois nós não pertencemos ao lugar”.

Tanto tempo viajando me despertou logo a curiosidade de saber como é a rotina dessa trupe familiar e sem pestanejar e com muito orgulho do que faz ele diz que “a nossa rotina é de teatro mambembe, de circo, de família onde se mistura tudo, a criação com a cozinha, com a mecânica, a convivência. Dou aulas pro meu filho de inglês, português, espanhol, música. Não encontramos uma escola integral pra ele. Estamos preparando um novo espetáculo que ensaiamos em momentos livres, está na encubadeira. Somos amantes de nossa arte, gostamos do que fazemos. Só podemos fazer isso porque somos uma família, um casal com um filho. Se existissem mais pessoas seria muito mais difícil. Uma vez formamos um grupo com duas Kombi, inclusive com artistas brasileiros, mas não deu certo. Muito gasto e pouca entrada. Moramos aqui nessa casa com três cômodos, bem simples e vamos trabalhando. Minha esposa dá aulas de Yoga e percebemos que essa cidade tem um mercado promissor. E dinheiro não é tudo, o mais importante é a riqueza compartilhada. O dinheiro vai chegar pra pagar as contas, nunca falta. Desde que chegamos aqui nunca nos faltou nada”.

A formação do grupo vem das ruas, da prática, da insistência e repetição de exercícios, qualidades que Orlando vê também no artista brasileiro, “o ator brasileiro é muito hábil, muito aberto pra receber informações”. Na época em que o grupo surgiu, Orlando havia acabado de sair do ensino médio e como a Universidade estava fechada na Colômbia, ele e seus amigos resolveram dar continuidade ao trabalho teatral que já realizavam na escola. “Nós não queríamos fazer o teatro de academia, o tradicional, Brecht, ou o de televisão, nós não fomos pra escola de teatro. Queríamos fazer outro tipo de teatro e começamos a compartilhar com grupos maiores, aprendendo técnicas, e acho que quem quer fazer teatro deveria ir pesquisar com grupos. Nós íamos pra cachoeiras, pras ruas, com pernas de pau, pra exercitar, confrontar o ator com o público, nas montanhas, naquela época era um teatro de compartilhar, se você quisesse aprender música era só procurar algum grupo que tinham a técnica e aprender com eles. O teatro de grupo forte mesmo foi naquela época, hoje é o teatro de diretor. Na Colômbia muitos atores estão na televisão. Eles deixaram o teatro de grupo e hoje estão completamente sem gestos, limitados”.

E não é isso o que eles querem. O grupo Locômbia continua pesquisando novas linguagens. Eles estão ensaiando agora um novo espetáculo que conta as fases da vida de uma pessoa, com várias técnicas, pernas de pau, técnicas brasileiras...

Conversamos também sobre a cena teatral de Boa Vista, e a observação feita por ele é de que aqui existe vitalidade, “está se criando um movimento muito grande de teatro de grupo, tem o Fórum Permanente de teatro, que nós não fomos ainda, mas ano que vem estaremos lá. O seminário Estadual de Cultura realizado aqui foi muito importante para os artistas gritarem que existimos. Agora os trabalhos, eles são experimentais, que misturam todas as técnicas. Ainda faltam amadurecer, mas o importante é correr o risco. Amadurecer, não tem um teatro profissional, precisamos é aprimorar as técnicas”.

E por que Locômbia?

“Fomos barrados no consulado da Colômbia, em Brasília, 1992. Era uma festa dos descamisados e eles disseram que só podiam entrar militares. Nessa época, em 92 mudamos o nome do grupo de LATARIMA pra Locômbia. Não queríamos pertencer a um país que nos fechou a porta, os consulados não servem pra nada, não apóiam em nada. Locômbia é um país utópico, sem guerras, sem miséria, sem narcotráfico, é um país sonhado por todos os artistas, é um segundo andar da Colômbia... continuam com aquele mesmo espírito do início”.

O grupo agora está de volta à Colômbia. Vão visitar a família, pegar o restante de suas coisas e retornarão à Boa Vista. Dessa vez para ficar. Ele lembra que “no início não éramos reconhecidos pela família, mas depois que saímos, demoramos bastante, e voltamos vivos, aí sim fomos reconhecidos como artistas. Estamos indo pra Caracas e depois voltaremos pra Boa Vista já pra morar. A idéia é montar uma sede, um espaço pra dar aulas de yoga, mímica, origami, ensaiar espetáculos. E sempre nos apresentando pelo caminho. Esse é o nosso meio de sobrevivência”.

Questionado sobre os motivos que ainda o fazem alimentar esse desejo de divulgar a arte pelas ruas da cidade, me surpreendeu bastante quando disse que "mesmo morando aqui nunca deixaremos de viajar. Precisamos sempre voltar, depois que se começa a viajar não dá pra parar. A arte mexe com o coração da gente, é vital, não é pelo dinheiro, é pelas pessoas que assistem aos espetáculos”.

REPERTÓRIO: (ver site do grupo)

Mara Baraha

O espetáculo Maha Baraha foi inspirado na Mitologia Hindu, na qual a Criação, a Preservação e a Destruição se combinam para criar a harmonia no Universo. Conta-se a historia maravilhosa de um encantador de serpentes (representando o demônio Hiranakio) que rouba o mundo da sua protetora, a Mãe Terra.

Compassos Em Silêncio


Esta peça foi inspirada nos encontros e desencontros da vida cotidiana, os quais são enfrentados de uma maneira poética, trágica e cômica. Através das Mímicas de "Compassos em Silêncio", o grupo desenvolve um teatro sem palavras, utilizando uma linguagem não verbal e corporal com música ao vivo (Saxofone, clarineta e percussão) enriquecido com Máscaras, Origami e alguns objetos.

Odissi


A Dança Odissi é originária da região de Orissa, situada ao nordeste da Índia. Faz parte do Culto ao Deus negro Jagannath, sendo uma representação de Vishnu, Deus que preserva. As bailarinas do Templo, chamadas de "Maharis" ou "Devadasis", eram jovens que consagravam suas vidas ao Deus e ao rito cerimonial, sendo treinadas pelo Guru ou Mestre do templo na tradição sagrada de contar historias da Mitologia Hindu através da expressão corporal e um rico vocabulário de gestos.Odissi tem um caráter espiritual e estético, relembrando a simbologia da Yoga e a Meditação em que se busca a união entre a mente e o corpo para liberar o espírito. A característica principal da dança é o Tribangui, correspondente a três dobras do corpo (na cabeça, no tronco e nos joelhos), formando sempre um triângulo com o corpo do bailarino, relembrando a linha sinuosa da estatuária em pedra dos templos hinduístas. Combina-se a expressão dramática com uma refinada e sensual estilização de movimentos corporais suaves e fortes, busca despertar emoções no espectador.

Marcelo Perez

Serviços:

55 – 095 – 8111-7042

E-mail: locombiateatro@yahoo.es

locombiateatro@hotmail.com
Página Web: www.atomoservicos.com.br/locombiateatro

A força do teatro de rua


Marcos Paulo · Porto Velho (RO) · 15/10/2006 14:44 ·





Quando se imaginaria que o teatro de rua ganharia tanta força em Porto Velho?”


Ouvi, sem querer, um dos estudantes em comentário discreto, mas preciso, sobre o espetáculo “O Mistério no Fundo do Pote - Ou como surgiu a fome”, de Ilo Krugli, interpretado por atores do grupo “O Imaginário”, que segue a temporada até o final de outubro. Tudo é muito novo, o que não significa falta de qualidade.


Quer mais um exemplo de como essa “novidade” veio pra ficar? “O Julgamento de Branca Dias pela Santa Inquisição”, de Dias Gomes, apresentado bem ao centro de um dos patrimônios históricos da capital: a praça das Caixas D´Água. Prossiga nas próximas linhas e logo vai entender como é essa força que o teatro de rua conquistou e encantou pessoas da cidade banhada pelo rio Madeira.


Depois de receber o Prêmio Funarte de Teatro Mirian Muniz, em maio deste ano, o grupo “O Imaginário” reuniu nove atores jovens de Rondônia para fazer a montagem da peça, que mais tarde percorreria as ruas de bairros considerados afastados do centro urbano. Para dirigir o espetáculo, nada menos que o conceituado e especialista em teatro de rua Narciso Teles, diretamente do Rio de Janeiro a Porto Velho, que teve apenas quinze dias para preparar os atores. Também não foi o primeiro a estranhar que por essas bandas de cá muito ainda deve ser feito. “Falta incentivo aos que querem que a arte atravesse e ganhe novas fronteiras”, enfatizou. Segundo ele, “o teatro de rua modifica poeticamente o espaço urbano e, ao mesmo tempo, abre-se para as inúmeras e possíveis interferências, como sons, falas, vento...”. Como mudou e acrescentou o aprendizado de uma das atrizes da peça, Tati Andrade, 23 anos, que estreou no teatro de rua. “Tudo está sendo muito novo pra mim, mas tenho certeza que quem assistir à peça verá que houve muito empenho e vontade de fazer acontecer: tanto pra nós, como ao público”.


O primeiro passo foi dado. Gente que nunca havia assistido a uma peça de teatro pôde conferir e se emocionar, de perto e gratuitamente, com a velha e pequena cidade ficcional de “Três Saudades”, num tempo em que não existia a fome e todos pegavam apenas o necessário, como reza a dramaturgia de Ilo Krugli. “Nem sabia que existia teatro na rua”, revelou a pequena e ingênua Fabiana Monteiro, 14 anos, que pela primeira vez assistiu a um espetáculo teatral sem sair do próprio bairro. Não obstante, o estudante Diego dos Santos, 16 anos, um pouco mais agitado, até articulou com seus amigos uma possível continuidade de projetos desta natureza ao seu bairro, o Tucumanzal, que já foi considerado um dos mais perigosos da cidade. “Nós daqui dificilmente temos oportunidade de assistir a um espetáculo como este, ainda mais de graça”, lamentou.


“Por ser ao ar livre, é como se fizéssemos parte do espetáculo”, analisa o estudante de História James Silva, ao assistir pela primeira vez ao espetáculo “O Julgamento de Branca Dias pela Santa Inquisição, apresentado francamente aos domingos pelo grupo “Abstractus”, na praça das Caixas D´Água. A peça é baseada no texto “O Santo Inquérito, de Dias Gomes, dirigido por Elcias Villar, que conta a história do julgamento de Branca Dias no século 18, ela é acusada de ter cometido pecados e atos contra a moralidade.


Ao longe, mais parece um tumulto ver a platéia camuflar a respiração boca-a-boca de Branca Dias ao Padre Bernardo, onde se inicia o processo de denúncias que levam a protagonista à prisão. Mais tarde, ela vem a ser queimada, segundo relata a história da trama. O espetáculo originou-se ainda em 2003, mas, por falta de espaço para apresentações e depois de anos de pesquisa, a direção do espetáculo resolve aceitar o desafio e trazer a história de Branca a sua concepção original.


No fundo, não era difícil imaginar que Porto Velho poderia – e pode – ter essa força de atrair centenas de pessoas para apreciar, descobrir e se encantar com a beleza e improvisação que é o teatro de rua. Sentir esse triângulo que se forma entre platéia, espetáculo e incertezas no cenário a céu aberto, por assim dizer, prova que basta unir as forças de grupos como “O Imaginário”, “Abstractus” e tantos outros com um pouco mais de incentivo a quem deseja levar cultura, arte e entretenimento.

Para mudar a realidade, Caretas





Joana Moscatelli

Rits. Brasil, agosto de 2005.


Desde 2001, o Grupo de Intervenção Social - Teatro Caretas trabalha com temas ligados a questões sociais, promovendo a reflexão e a mobilização da população da periferia de Fortaleza (CE). Formado por quatro atrizes, a idéia do grupo é fazer do teatro um veículo de transformação social, abordando em seus espetáculos assuntos que tenham a ver com a realidade do público e que o ajude a se mobilizar para mudar e lutar por seus direitos.


Através de pesquisas na área de cultura popular, a iniciativa busca relacionar suas peças com questões sociais e problemas existentes. Os espetáculos são inspirados no trabalho de dramaturgos como Bertold Brecht e Augusto Boal, autores que, apesar de defenderem técnicas teatrais bem diferentes, buscam a conscientização do público acerca de temas ligados ao seu cotidiano. "Assim como Brecht, acreditamos na responsabilidade social do teatro. Trabalhamos com a idéia de um teatro que mobilize as pessoas a atuarem na sua realidade criticamente", explica Vanessia Gomes, uma das atrizes integrantes do grupo.


Além disso, o Teatro Caretas também trabalha muito com o conceito de "Teatro Fórum", de Augusto Boal, apresentando suas peças em praças públicas, associações comunitárias e festivais. Boal é o criador do Teatro do Oprimido, que rompeu com a estética tradicional do teatro e propunha o envolvimento da platéia na cena.


Com isso, o grupo quer levar para áreas pobres peças que tratem de temas ligados ao cotidiano das pessoas e abrir o debate acerca de problemas que as afligem. Após as apresentações, são realizadas oficinas de teatro, circo e percussão. Além disso, são promovidas palestras que buscam aprofundar ainda mais a discussão.


Outra grande fonte de inspiração para o grupo é o educador Paulo Freire. As idéias de educação popular do pedagogo influenciam as atrizes, que buscam em tradições populares, como o reisado e os folguedos, temas para seus espetáculos. Inspiradas na cultura tradicional popular, elas apresentam peças de teatro de rua, aliando arte e política.


Entre as peças que o Grupo já produziu estão "Acorda Zuleica!", que discutia a importância da consciência ambiental, e "E agora, José?", que incentivava a elaboração de políticas públicas para melhorar a condição das pessoas que vivem em áreas de risco. O último espetáculo produzido foi "A casa da mãe Joana", cujo tema era a violência sexual contra crianças e adolescentes. Durante as apresentações, o Teatro Caretas entrou em contato com o Centro de Referência da Mulher de Fortaleza e surgiu a idéia de realizar um espetáculo que tratasse da violência doméstica contra a mulher.


E será justamente este o tema da próxima peça. Ainda em fase de montagem, "Rompendo o Silêncio" conta a história de uma rainha que sofria com a violência do rei e achava que nada poderia fazer para mudar sua realidade até perceber que deveria abandonar o rei. A situação é conhecida e vivida por muitas mulheres brasileiras, e a intenção é fazer com que elas percebam, assim como a personagem, que não devem aceitar serem humilhadas e maltratadas por seus maridos e companheiros.


A estréia está prevista para outubro no bairro de Jangurussu, em Fortaleza. Atualmente, o Grupo está identificando áreas onde os índices de violência contra as mulheres são maiores e realizando contatos com associações, movimentos de mulheres e de luta contra a violência doméstica.


A articulação com movimentos sociais e culturais além de associações comunitárias é fundamental para que o grupo possa identificar questões a serem tratadas em seus espetáculos. As integrantes buscam trabalhar em parceria com movimentos sociais e políticos como o Instituto de Saúde e Desenvolvimento Social (ISDS) que desenvolve estudos e projetos na área de saúde e desenvolvimento social. Outro parceiro é o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca). E, na área da cultura, trabalham também juntamente com o Teatro José de Alencar, o Teatro da Boca Rica e a Federação do Teatro Amador, todos de Fortaleza (CE).

Recentemente, o grupo ganhou apoio do Fundo Ângela Borba, que financia projetos sociais ligados à melhoria das condições de vida das mulheres. A iniciativa foi uma das ganhadoras do V Concurso do Fundo e passou a receber recursos para a realização de seu espetáculo.

Tuesday, August 08, 2006

LISTA DE APROVADOS PARA O NÚCLEO DE PESQUISA E MONTAGEM DE TEATRO DE RUA DA ELT - Ago/06

Aline Anfilo da Silva

Eder Lopes

Edson Pedroso dos Santos

Gabriela Braga de Jesus Santos

Juscelino Rosa de Oliveira

Rafael dos Santos de Barros

AOS SELECIONADOS: informamos que os encontros do núcleo iniciam-se no dia 10 de agosto (quinta feira).

Pedimos para que os mesmos tragam para esse primeiro encontro, conforme conversa no dia da seleção, de uma a três peças de teatro que gostariam de montar na rua. Cada integrante do núcleo fará a sua "defesa" dos seus textos.

Monday, July 10, 2006

Entrevista com Thomas Holesgrove

Em outubro do ano passado, o artista de rua australiano Thomas Holesgrove, associado pelo núcleo Arte Tangível concedeu a seguinte entrevista para o Portal da CPT:

Portal – Vamos começar conhecendo a sua experiência, o que te levou para a rua e a trajetória entre o trabalho no seu país até chegar no Brasil.

TH – Comecei como ator, na adolescência, fazendo malabarismo e clown. O único lugar pra eu apresentar isso, na capital da Austrália, era a rua e eu comecei de forma muito rústica, sem direção mas com muita vontade. Nunca tinha visto teatro de rua, nem sabia como fazer. Daí eu comecei a conhecer artistas de rua de Sidney, que vinham de vez em quando a Cambra, com estruturas muito fortes e focadas em habilidades circenses, eficazes no jeito de atrair o público.

Portal – Como era esse jeito?

TH – O formato bem típico na Austrália é a construção do personagem enquanto ainda não começou o espetáculo, enquanto você ainda está arrumando as coisas pra começá-lo.

Portal – A própria preparação já faz parte do espetáculo.

TH – Você já entra na personagem e isso já atrai um público enorme, já conquista uma primeira fila, sem a qual ninguém pára para assistir. Isso é diferente do que acontece no Brasil, onde o povo parece ter mais interesse em assistir um cara fazendo alguma coisa na rua. Na Austrália, se você está tentando fazer um espetáculo, e não tem público, as pessoas têm medo de parar para assistir, porque pensam que você é um louco. Mas, se você já tem uma fila... Você diz: “vem aqui, espera um pouquinho, eu vou fazer um espetáculo”, rústico assim. A gente estabelece um papo com eles, enquanto se forma essa primeira fila. Então, se tem público, aí todo mundo quer ver o que é que está acontecendo.

Portal – E nesse tempo, enquanto você forma o seu público, vai fazendo coisas...

TH – É semelhante à estrutura da commedia dell´arte, que tem um esqueleto concreto mas também uma série de piadinhas que são de valia enquanto vai se ocupando o espaço, falando com as pessoas ou simplesmente fazendo malabarismo, comédia física, música, que é muito comum usar nessa primeira parte do espetáculo. Daí se entra na estrutura do espetáculo, para apresentar ao público o que você vai fazer: “eu vou fazer um espetáculo e vai ter um final espetacular, todos têm que assistir!”...

Portal – E, no final, roda-se o chapéu.

TH – Exatamente. Você vai construindo o corpo, sempre pegando alguém do público para participar, porque o público adora ver alguém do público lá, tentando se situar, dentro do espetáculo. Ajudar a subir no monociclo ou ajudar a passar as facas ou tochas de fogo é uma coisa que não se espera que alguém do público saiba fazer. Então é importante criar essa tensão e ir improvisando com essa pessoa.

Portal – E quanto à questão de políticas culturais, qual é a atenção que o governo dá para essa arte na rua, lá?

TH – O governo nem quer saber [risos]. Na verdade, lá na Austrália, dependendo do lugar, dá pra se viver com esses espetáculos. Só com a contribuição do público.

Portal – Em média, uma rodada de chapéu rende quanto?

TH – Bom, pra mim, em Sidney, um bom chapéu seria 200 dólares australianos – como 200 reais, aqui – seria considerado um bom resultado. Mas você pode fazer uns dois, três ou quatro espetáculos durante um fim-de-semana e, então, você pode até viver bem. O problema é a competição com outros artistas, que estão fazendo outras coisas ou se chove durante o espetáculo e o público vai embora. Tem várias complicações, mas dá pra viver. Mas o governo não quer saber. Às vezes, nem quer que essas coisas aconteçam.
Na verdade, para os artistas de lá, é uma luta preservar essa arte. O governo diz que “não pode ter isso porque atrapalha os turistas”, ou até mesmo as pessoas da rua reclamam e então a polícia vem e manda os artistas embora. Então, para nós, fica difícil explicar ao governo que, na verdade, a arte é uma coisa maravilhosa, que os turistas adoram, tem pessoas que vêm para assistir teatro de rua. É uma luta mostrar pra eles o quanto a gente está contribuindo, sem nada esperar do governo, para a vida cultural da cidade.
E tem várias questões de segurança. As pessoas que pedimos para jogar uma faca ou uma tocha podem ser bastante perigosas para o público. Eu já vi artistas que não sabiam o que estavam fazendo realmente fazendo coisas perigosas para o público. O governo olha para a segurança pública, com propostas que regularizam isso.
O artista então tem que ter uma licença pra fazer teatro de rua em vários lugares.

Portal – Quer dizer que lá existe um controle com reconhecimento oficial nesse sentido?

TH – Em Sidney, sim. Mas tem lugar que você vai lá, faz e pronto.

Portal – Como é que funciona essa licença?

TH – Você vai à prefeitura e faz um formulário. Se você vai usar, por exemplo, facas ou fogo, três artistas de rua avaliam se a forma é responsável. Paga-se uma taxa de 5 dólares australianos por mês e você tem essa licença. Também existem locais definidos onde se pode fazer. E só se pode fazer nesses lugares, que são os melhores lugares e onde o governo já concordou em liberar.

Portal – E há também uma fiscalização acerca do teor da peça?

TH – Tem lugar que sim, porque há espetáculos em que alguns artistas realmente gostam de desafiar o público com piadinhas...

Portal – Mas isso não é censura?

TH – Com certeza é. A justificativa do governo é que tem a ver com a questão da segurança e a paz pública. Mas eu já vi artistas que passam do limite do aceitável. Se eles devem ou não ser censurados, eu não sei.

Portal – Mas você não acha que o próprio público poderia exercer esse tipo de censura?

TH – Sim. Mas, em primeiro lugar, não é o caso de teor político. É sobre as agressões com palavrões...

Portal – Politicamente não existe esse tipo de censura?

TH – Nunca vi censura ligado a política, alguém falando sobre “o governo estar destruindo a nossa vida”. São pessoas realmente agredindo o público com palavrões, insultos. E normalmente são os piores artistas, os que não conseguem parar ou pegar um público e ficam lá, tentando e tentando, frustrados. Então alguém passa e eles agridem. Para mim, existe, sim, essa censura, mas eu nunca vi, até agora, na minha experiência, isso como uma coisa usada para censurar política ou artisticamente. Para mim parece ser mais um controle de qualidade que me ajuda como artista, porque mostra que não é para todo mundo ir lá, fazer e criar uma imagem ruim perante o público. Ao fazer o meu espetáculo, eu quero que o público e o governo me respeitem como artista porque estou fazendo uma coisa honesta, que seja arte mesmo, não qualquer coisa.

Portal – Tem bastante gente fazendo teatro de rua, na Austrália?

TH – Quando eu estava lá, tinha um monte de gente.

Portal – Faz quanto tempo que você saiu de lá?

TH – Em 2001 eu viajei para a Europa, para apresentar espetáculos e fazer um curso de commedia dell´arte na Itália, onde encontrei uma atriz brasileira, a gente se casou e agora eu estou vivendo aqui e trabalhando com ela.

Portal – Qual foi sua experiência na Itália?

TH – Estive rodando o chapéu com apresentações do espetáculo com o qual trabalho aqui no Brasil. Também participei de alguns festivais. Nos países latinos em geral, é uma experiência que as pessoas adoram, vêm assistir, gritam, batem palmas mas, no final, quando a gente diz “agora pedimos que vocês paguem”, puff! Vai todo mundo embora... [risos]

Portal – Pelo jeito, isso é no mundo inteiro!

TH – Na Austrália, em Sidney, no Festival de Edimburg, o chapéu às vezes é muito bom. Também na Holanda existe lugares excelentes para se viver pelo chapéu.

Portal – Você conseguiu perceber alguma coisa em torno de políticas culturais interesses, nesses lugares da Europa que você visitou?

TH – Quando se fala de “política cultural”, se quer falar de...

Portal – O poder público participando do estímulo, da manutenção e da criação de possibilidades para o teatro de rua se manifestar e de ser pago, de maneira a devolver o dinheiro público ao cidadão.

TH – Uma coisa que me frustra muito na Austrália é que culturalmente a identidade do país é muito centrada no sucesso nos esportes. Se você faz um tipo de esporte, “uau, que legal, eu faço isso também, jogo futebol, eu conheço todos os jogadores de todos os esportes, futebol, natação, basquete, tudo”. Mas, nas artes, você diz que é artista e a resposta que vem é: “é? Não dá muito dinheiro isso, não é?”. Eu não vejo frisson em artes. O governo tem tentado criar leis de incentivo para ajudar artistas, mas eu tenho sentido que o povo australiano não tem muito interesse nas artes, no teatro em geral. Com o teatro de rua se vê claramente que não tem apoio do governo. Há apoio para o teatro, então se poderia fazer inscrições para o teatro feito na rua. Então vira teatro comercial. Esse tipo de teatro que eu faço o público, no final, pode achar muito legal e pagar. Mas meu espetáculo é diferente, usa clown, é uma exceção. Na Austrália, o que funciona bem é um cara bem macho, tatuado, com piercing, fazendo espetáculo de circo, com piadinhas. Para mim, são animadores maravilhosos. Mas, para mim, não tem muito de teatro. Meu interesse é teatro, por isso eu trabalho muito mais com clown. E isto torna a coisa mais difícil, para mim. “Por que ele está vestido assim, fazendo essas coisas?”, o público não entende uma coisa simples como a linguagem de clown. Tem o caso de artistas que foram agredidos pelo público, entrando no palco xingando “você é uma bicha”, chegando ao nível de bater. Eu uso um formato que funciona, que agrada, então eu posso ter sucesso. Mas é esse o clima. Tem também os espetáculos itinerantes, grupos maravilhosos, bem bacanas...

Portal – Você pode citar alguns?

TH – Eu me lembro de um grupo que os artistas caminhavam, todos de terno, com as cabeças dentro de tanques de água, tipo aquários, como se fossem peixes. Eu não sei como conseguiam, eles passavam cerca de duas horas andando com esse negócio. Tem um outro grupo, se não me engano chama-se Icara, que fazem espetáculos itinerantes com pernas-de-pau, bonecos, figurinos enormes e tudo isso que é muito legal. Mas todas essas coisas, como eu disse, não têm apoio do governo e é uma coisa que também não funciona com o chapéu. Então resta vender essas coisas para festivais.

Portal – E a iniciativa privada, empresas, o comércio, compram? Patrocínio para teatro de rua.

TH – Patrocínio para teatro de rua eu não sei. Eu nunca segui esse caminho. Deve existir. As companhias, empresas, instituições comerciais querem patrocinar uma coisa bem visível, comercial, que já tem sucesso. Então eles querem apoiar o Sidney Theater Company, com os atores de televisão, o diretor que já é famoso. Tem grupo de circo que também faz teatro de rua, que fez aquele evento de troca de milênio, com os fogos, ao lado do Cine Opera House, que faz coisas impressionantes na rua e no teatro também. Eles já fazem sucesso, mas agora eu não sei se eles têm apoio, patrocínio de alguma empresa. Mas ele tem esse perfil, agora que eles já têm reputação. Mas para as pequenas companhias de teatro de rua...

Portal – ... ou seja: nada tão diferente do Brasil! E na Europa, o que você sentiu, nesse sentido?

TH – A Europa abriu os meus olhos para o fato de que uma arte mesmo, como o teatro de rua, existe. Primeiro eu estava participando do Festival de Edimburg, onde existe um circuito excelente para espetáculos de chapéu, havia mais de trinta artistas de toda parte do mundo, Japão, Canadá, Inglaterra, Holanda, nem tanto da França, que não cultiva muito espetáculos de chapéu. Estive nesse festival, fazendo espetáculos na rua, apresentando para platéias de 500 pessoas, que estavam passeando e param para assistir ao espetáculo, com dinheiro para pagar o espetáculo e pagam, pagam com libras. Isso foi excelente, mas o volume de espetáculos de chapéu que eu vi lá foi impressionante.

Portal – O que é que você pode contar pra gente, das suas observações sobre esse tipo de trabalho?

TH – Uma coisa importante para mim era clown. Na Europa, o público entende melhor clown do que na Austrália. Então tive a oportunidade de ver outras pessoas fazendo espetáculos de chapéu com clowns maravilhosos. Um cara – o nome eu esqueci – fazendo somente clown, sem usar nenhuma habilidade de circo, fazendo clown brincando o tempo todo com o público durante o espetáculo. Foi muito bom ver como funciona, na rua, um espetáculo assim. Outra coisa foi ver como funciona outras formas de teatro de rua.
E eu viajei para vários lugares. Cheguei na Espanha e fui para um festival a umas três horas de trem de Barcelona, que deve ser um dos principais festivais de teatro de rua na Europa. Em Barcelona também foi muito interessante. Eles tem um local que se chama Las Ramblas, que é uma avenida central. Eu fiquei surpreso, porque não tinha espetáculo rodando chapéu. Eu fui lá fazer um espetáculo, todo mundo assistiu, adoraram o espetáculo mas ninguém pagou nada. Mas nesse lugar tinhas as Estátuas-Vivas, então era um lugar mais para isso. Eu já tinha visto estátuas, mas não com aquela qualidade, com aquele nível de apresentação, com a brincadeira com o público e jeito de trabalhar com esse gênero.
Vi outro gênero, não sei como se chama, mas você fica lá, esperando as pessoas passarem, e uns caras vestidos de monstros ficam ao lado de uma ruela, esperando as pessoas saírem, de repente eles pulam e dão um susto. E tem um outro lugar em que outras pessoas se divertem assistindo a preparação desse susto. É muito diferente e muito gostoso. Na verdade, num festival que aconteceu em Melborn, na Austrália, eu estava assistindo vários grupos australianos e europeus que me lembravam muitas coisas que eu vi na Espanha, trabalhando com diversos tipos de bonecos enormes, em pernas-de-pau, esse gênero de teatro que é muito lindo, às vezes muito lírico...

Portal – Quem é a atriz brasileira com quem você se casou?

TH – Luciana Saul, que faz parte da Arte Tangível. É atriz e faz um pouco de teatro de rua, comigo. A gente foi para a Austrália com um espetáculo infantil, “Nasus e Flora”, onde ela faz o papel de um girassol enorme, então seu figurino visualmente é grande. Esse espetáculo não é de rua, mas eu percebi que esse figurino que ela usa e até mesmo esse personagem, pois ela tem muita experiência em clown, também, o jeito com que ela brinca com esta personagem, foi muito divertido. Eu percebi que eram bons elementos para a rua. Então, quando a gente foi para Sidney, a gente brincou um pouco com isso, fazendo experimentos, pondo esse personagem dela para interagir com o público, coisas assim. Eu não sei se a gente vai ou não ampliar essa pesquisa.

Portal – E no Brasil...

TH – Aqui no Brasil uma coisa que está me animando muito, e eu tenho que admitir que, até agora, eu conheço pouco do teatro de rua no Brasil, faz três anos que a gente está formando a Arte Tangível, nossa companhia de teatro, e Luciana está fazendo mestrado na USP, um projeto sobre teatro e ritual, estudando rituais de candomblé, base para nosso trabalho como atores ocidentais... O que eu estou vendo, no momento, é uma coisa que para mim é muito animadora, que são companhias fazendo teatro mesmo, na rua, contando histórias. E também o nível de comentários sócio-políticos é muito inspirador. E isso é uma coisa que nem na Austrália e nem na Europa eu vi, como fazem os grupos aqui no Brasil. Eu estou muito inspirado e tenho muito respeito por isso, porque eu acho que é um trabalho importante, colocar a rua como um lugar para essa discussão.
Em S. José do Rio Preto assisti “Movimentos para Atravessar a Rua”, do Tablado de Arruar, que, para mim, é o melhor trabalho brechtiano que eu já vi. Uma peça sobre desemprego e pessoas que catam papelão. Foi muito inspirador pela qualidade do espetáculo mas também pela reação do povo brasileiro que vem para assistir e também participa, fazendo perguntas diretas para o grupo e o grupo para a platéia: “vocês acham que isso está certo?” e a platéia respondendo. Esse debate dentro do espetáculo é que, para mim, é uma das forças do teatro de rua.
Eu, como ator, não trabalho só na rua e até cheguei a fazer trabalhos como ator para o Sidney Theater Company, que é uma das maiores companhias de teatro da Austrália. E também para o Sidney Opera House. Mas, usando a palavra de Peter Brook, era o teatro morto, sabe? Em primeiro lugar, somente os ricos podem pagar ingressos de 50 dólares, que só vão lá porque tem algum nome famoso no elenco, nem sabem o que é a peça, nem entendem bem o que estão indo assistir, é como se estivessem assistindo a televisão, e a maior parte vai embora no intervalo. O que eu gosto no teatro de rua é que ele é acessível para todo mundo. Mistura rico, pobre, cara que vive na rua mesmo até acadêmicos, intelectuais, crianças...
E também por ser interativo. Isso já é uma coisa que eu gosto no teatro de rua na Austrália. Mas o conteúdo sócio-político que eu vejo aqui no Brasil se torna uma coisa tão importante para a comunidade, uma coisa tão valorosa, que me dá muito prazer. Meu espetáculo é mais na linha do entretenimento. Eu acho que isso é muito importante, também. Eu tenho muito prazer em fazer esse espetáculo. Mas esse lado sócio-político, aqui no Brasil, tem uma força. Além disso, eu tenho observado formas específicas de teatro de rua do Nordeste, tanto no que diz ao figurino como ao uso de músicas. Eu estou muito animado a conhecer mais esses tipos de teatro de rua, também.

Portal – Conhece as referências de cordel, de repentistas, manifestações de rua do Nordeste?

TH – Em Ilhéus, na Casa dos Artistas, existe uma pesquisa de teatro de cordel e eu tive a oportunidade de assistir uma apresentação deles, nesse gênero, que eu achei maravilhosa. Então eu junto esse pouco contato com o que as pessoas me contam sobre teatro popular no Brasil. O que eu estou percebendo, pra ver esse lado sócio-político aqui em São Paulo, mas também eu estou percebendo é que tem uma tradição, um mundo de teatro de rua aqui no Brasil e na América Latina, que não existe nos outros lugares do mundo que eu conheço até agora.

Portal – Você tem alguma referência em outros países aqui da América Latina?

TH – Ah, eu tenho ouvido muita gente dizendo que eu tenho que conhecer o teatro de rua da Colômbia, que é maravilhoso. Sei também que, na Argentina, tem um movimento bem forte de teatro de rua, como no Chile, também. Mas de novo é essa coisa de vários gêneros de teatro de rua que existem aqui na América Latina. E esses estilos diferentes, tradições mesmo, que não existem fora do continente, portanto, eu não conheço. Por exemplo, o uso de bonecos ou de pernas-de-pau eu já vi bastante na Europa e na Austrália, mas as pessoas estão me falando que aqui tem um estilo bem específico, tradicional, nos lugares do Nordeste.

Tuesday, June 20, 2006

Entrevista Com Georgette Fadel



Fonte: Portal da Cooperativa Paulista de Teatro


Portal da CPT — Dentro da sua trajetória profissional e da pesquisa da Cia. São Jorge de Variedades, como você vê o teatro realizado na rua?


GEORGETE FADEL — Isso é uma vida, não é? Quando eu penso numa coisa eu sempre e imediatamente penso também no contrário. E então as opiniões que eu emito sobre as coisas me parecem meio superficiais. Quando eu penso em teatro de rua, eu penso em festa popular, em teatro tradicional, em bumba-meu-boi, naquelas cheganças ou na festa do divino, que eu assistia nas festas de São João, em Laranjal Paulista, perto de Tietê, que tinha um clima... Era como se aquilo é que fosse a vida mesmo e, na verdade, todo o resto fosse a manutenção de um estado um pouco de dormência. Eu lembro muito do carnaval ou do natal em Laranjal, então sempre que eu penso em teatro de rua eu penso nessa onda, parece que eram os momentos felizes da minha vida.
Eram momentos de festa, literalmente festa — o que hoje a gente procura, por exemplo, indo a uma boate... mas não é a mesma coisa! Mesmo porque tem uma ingenuidade, nada assexual, pelo contrário, sexual pra caramba, mas é plenamente compartilhada por crianças, velhos, adultos, jovens, etc., onde tudo tem um aspecto teatral, inclusive brigas, conflitos, tudo ganha um aspecto festivo, colorido.
Então, quando eu penso em teatro de rua, eu já penso direto nessas paradas: maracatu, que eu vi no Recife, aquela vontade de dançar e cantar...


Nós somos a vanguarda


Portal — O Amir Haddad encara isso como um "teatro de celebração"...


FADEL — Uma celebração! Celebração da colheita, da vida, do acasalamento, da morte. Eu lembro do autofalante em Laranjal, por exemplo, tocando "Ave Maria" e anunciando o falecimento de fulano de tal. Eram coisas que me tocavam profundamente, eu passava o dia inteiro triste por conta daquilo. A festa junina no entardecer, a roda gigante...
Eu não comecei falando que eu penso numa coisa e já penso na oposta? Hoje, aqui em São Paulo, a gente pensa: ah, eu não quero fazer o tradicional; eu quero fazer o novo na rua. O que é que é a nova rua? O que é que é a dança da alienação, qual é a dança da urbanidade? Aí você pensa no hip-hop, manifestações também festivas mas amarguradas em algum lugar, de protesto, de luta, quase que pela sobrevivência, conquista de espaço, porque o espaço não está garantido. Pelo contrário, vai cada vez mais ficando mais restrito, difícil, parece que a gente está numa guerrilha e que a gente está num movimento de resistência. Mas a gente não está, não é?
O Celso Frateschi falou, uma vez, que "nós não somos a resistência, somos a vanguarda". A gente deveria ser temido! E acho que até somos, sabia? Por exemplo, essa coisa do programa municipal de Fomento ao Teatro, que alcança uma mini-fatia da produção teatral de São Paulo, a gente ameaçou ir para a rua, para protestar com fim do fomento, quando o Serra assumiu, na madrugada anterior eles chamaram a gente para conversar, voltaram atrás na decisão e o fomento, a trancos e barrancos, resiste e persiste — sempre fadado um pouco à crise.
Parece que, em algum momento, a gente vai ter que dar uma pequena enlouquecida e arriscar um pouco mais. Eu penso sempre na figura do Paschoal da Conceição, que, gostando ou não gostando, errando ou não errando, ele erra grande! Ele vai para a Câmara dos Deputados e diz: "eu sou Mário de Andrade e você vai ter que jurar, aqui na frente de todo mundo, que pá pá pá pá pá pá..."! Ele tem uma interferência política muito forte, ele acha que o teatro tem que ir até onde está o teatro, meu!
Nesses lugares públicos, nessa farsa toda que foi armada e os artistas, na verdade, são os únicos que não estão vestindo as máscaras. Está acontecendo uma inversão! Parece que a gente não está mais vestindo máscara, porque justamente a única máscara útil da gente vestir agora é a não-máscara, porque está todo mundo tão mascarado que você, ao buscar o seu eu profundo...


Portal — Você mostra a máscara do dito-cujo!


FADEL — Exatamente. Por isso que é um trabalho que é o oposto, não é?


Esmagamento econômico


Portal — O Alexandre Mate te considera uma das maiores atrizes de teatro de hoje em dia...


FADEL — Coisa de amigo!


Portal — Dentro da tua ética e da tua estética, da tua forma de ver o teatro, o acontecimento teatral, onde é que você está feliz e onde você se sente insatisfeita com o que se produz atualmente pelos grupos? Nós vivemos atualmente uma época de grupos, de novo, graças a Deus! Foi resgatada essa história. E a Lei de Fomento tem muito a ver com isso — ou então é resultado disso! A História é quem vai responder isso. Onde é que o teatro de rua está acertando e, principalmente, onde está pecando do ponto-de-vista estético?


FADEL — Eu não tenho a dimensão pra te responder de uma maneira épica. Vou responder intuitivamente, porque eu tenho assistido à minha própria experiência, a que eu acompanhei dentro dos albergues (e a nossa vontade é que o próximo espetáculo seja na rua), tenho assistido às interferências do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, tenho assistido ao Tablado de Arruar, ao Grupo XIX com a experiência lá na Vila Zélia. Então a minha visão é restrita.
Mas eu passo muito na Praça da Sé e fico observando aqueles vendedores, os caras que pulam no meio das facas, os caras que ficam fazendo desenho no meio da Rua 24 de Maio, o centro da cidade é extremamente... feira livre! Tem aquela pauleira, aquela coisa sonora maravilhosa que rola numas feiras livres especiais de São Paulo, mas mesmo assim uma coisa muito restrita perto do movimento teatral que rola.
Sinto que está rolando um esmagamento feio, que nos falta acabamento, que nos falta a possibilidade de uma dedicação, de um treino específico garantido, uma infra-estrutura, um local de ensaio, com possibilidade de acesso a cursos, a treinamentos, que a gente possa ficar o dia inteiro com aquele trabalho, com aquele grupo, e que isso responda às necessidades financeiras de cada um dos membros daquele coletivo.
Eu, por exemplo, trabalho em setenta mil lugares ao mesmo tempo. Em alguns momentos isso é perfeitamente viável e tudo se junta numa coisa só. Mas, em outros momentos, isso acaba com a minha possibilidade de me dedicar o suficiente a algum trabalho. Então eu tenho que ter ali tudo o que eu precisa ter, pro trabalho dar certo. Mas eu não tenho o tempo de aperfeiçoamento e a verba necessários para um acabamento, que me permita convidar profissionais que possam me ajudar a elevar a minha arte, num diálogo. Às vezes você tem que fazer tudo meio sozinho, porque você não tem como dividir nada com essas pessoas que viriam trabalhar com você se tivessem algum retorno financeiro. E com toda razão!
Chega um determinado momento em que a vida depende um pouco de você conseguir fazer a sua manutenção mínima na cidade de São Paulo. Eu sinto que a gente é esmagado economicamente. Você fica dependendo de uma insegurança muito grande, o que interfere muito na sua psiqué, pois você fica numa insegurança constante em relação ao futuro, de uma tal maneira que parece que você está sempre vendido.


Trampolim para o palco italiano?


FADEL — Eu estou tentando construir uma casinha lá pros lados de São Lourenço da Serra pra ver se eu consigo escapar dessa roda-viva da cidade... Tentar ficar alguns dias lá, plantando na hortinha, franguinho de lá, mel, arroz, tentar construir uma vida um pouco auto-suficiente pra poder ganhar liberdade...


Portal — Liberdade vem da auto-suficiência?


FADEL — Eu estou achando que a gente está começando a ser expulso da pólis! Não sei se algum dia a gente foi incluído, eu não tenho uma noção histórica tão ampla pra dizer sobre essa trajetória do artista. Mas eu sinto que o teatro tem uma força... A gente cresceu assistindo televisão e cinema americano, e muito pouco teatro (processo que vem de antes da gente nascer). A gente já nasceu diante de um teatro que parece que a gente é uma cópia mal feita de cinema e televisão, ou que tem algum pezinho ali. Então, a gente ainda está correndo atrás da força espantosa que o teatro pode ter.
Eu sinto isso quando a gente fala de sacerdócio, de disciplina, de impecabilidade desses guerreiros, de treinamento desse ator, de mente-corpo-espírito e tal... A gente vai indo, vai indo e vai indo. Mas quando a gente vai pra cena, a gente sente que a nossa expressão não está atingindo esse lugar tão sagrado da representação. Eu estou aqui jogando muita coisa fora, não é? Eu já falo e ao mesmo tempo eu já penso em acontecimentos teatrais...


Portal — Só pra você ter uma idéia, ao criar esse espaço virtual dentro do portal da Cooperativa Paulista de Teatro, voltado a quem pesquisa sobre teatro de rua, eu fui informado que no acervo da USP há apenas uma tese sobre o assunto. Isso reflete o que? Nós não temos uma visão acadêmica sobre teatro de rua. E política cultural, o que será que temos, além deste programa municipal de fomento ao teatro? Quem está sediado em municípios vizinhos à Capital, por mais que desenvolvam seus trabalhos também nela, não tem possibilidade de pleitear esse tipo de verba. E, a menos que inventem uma catraca em espaço público, teatro de rua não prevê bilheteria de forma alguma.
Por outro lado, para a iniciativa privada a falta de absoluto controle seu sobre a liberdade intrínseca ao Teatro de Rua na opinião do dramaturgo Luiz Alberto de Abreu, pode muito bem inviabilizar patrocínios das grandes empresas. Somadas todas as edições da Lei de Fomento, o que se nota é que, proporcionalmente, embora plenamente merecedor, é muito pequeno o número de grupos de teatro de rua fomentados.
Não estará ocorrendo uma forma equivocada de a própria classe — que é quem (graças a Deus!) julga os projetos apresentados em cada edição — encarar o teatro de rua?


FADEL — Diante desse esmagamento todo, pequeno-burguês, o teatro de rua é historicamente desvalorizado como um teatro menor. Parece que o teatro, mesmo, é o do Stanislavsky, do palco italiano. Eu adoro ele, acho que ele deve ter sido maravilhoso, não é preconceito em relação a ele. Mas, quando a gente entra numa escola, das mais tradicionais, você começa a estudar teatro, sei lá, pelo realismo.
Você vai estudar o teatro de rua como algo alternativíssimo, como se ele não fosse teatro por excelência e o palco italiano ou da caixa fechada sim: a alternativa de teatro. Mas o teatro de rua é com certeza o ponto dos mistérios medievais, de muito antes dos gregos. Onde era feito o teatro? Então, existe uma desvalorização, ao mesmo tempo dialética, porque mesmo dentro da escola se diz que você só aprende a fazer teatro depois de fazer teatro de rua! Então quase que o teatro de rua é um treinamento para um ator poder fazer dignamente um teatro que interessa, que é o teatro da sala fechada! O teatro que tem o silêncio, que tem a luz, um bom comportamento do público, uma relação hierárquica com a platéia, que bota aquele talento todo e aquele jogo de cintura todo — que ele adquiriu na rua e, por causa da barulheira da rua, não pôde ser visto direito —, aí ele vai pra sala de espetáculo e bota um foco naquilo lá, silêncio, todo mundo comportado pra admirar a sabedoria daquele ator. Isso existe, sim.
Na verdade, teatro de rua é Teatro! Nos outros você bota o epíteto, o adjetivo necessário, entendeu? TEATRO. É na rua? É dentro da caixa preta? Ah, bom! Aí, teatro de rua já vem quase como sendo uma outra arte. O teatro, que significa algum lugar fechado, preto, essa coisa caixão, esquisitíssima que é, e o teatro de rua, que é quase um "apêndice" do teatro.
No nosso imaginário, nós que começamos a fazer teatro, às vezes, por pura vaidade, porque nós queríamos ser olhados, obviamente o palco italiano é a melhor opção, porque bota um foco na tua cara, com uma puta maquiagem e você fica lindo, andando de um lado pro outro. A gente sabe que noventa por cento dos atores entram em cena por isso: para serem amados. E nada melhor do que botar você ali, no pedestal, pra você ser amado.


Conviver com os miseráveis


Portal — O que é que, em essência, legitima o artista levar sua expressão teatral para o espaço aberto?


FADEL — Escuta! Qualquer pessoa tem legitimidade para ir pra rua e fazer o que quiser. Acho que isso é que é o tesão. Eu posso ir pra rua plantar bananeira e ficar ali, cinco mil horas, plantando bananeira, ninguém tem nada com isso. A rua é legítima por si só, mesmo dentro de uma estética teatral. Você tem o direito absoluto de experimentar qualquer tipo de coisa, acadêmica, não acadêmica, convencional, não convencional, festa, tragédia, a puta-que-pariu na rua!
A rua é de todo mundo, não tem essa. Agora, falando mais no sentido da classe teatral, o que é legítimo ao ir pra rua é que, ao ir pro teatro fechado, geralmente você está falando pros seus amigos, hoje em dia. Por baixo, cinqüenta por cento daquelas vinte, cinqüenta ou cem pessoas que estão sentadas na platéia pra te assistir estão se auto-alimentando, e às vezes criando processos de separação estética e ideológica e não de sociabilidade, entendeu?
Eu vou te falar uma coisa bem cafonona mesmo: quando a São Jorge foi para o albergue, o que a gente queria era conviver com os miseráveis, porque a gente sentiu que a gente não tinha linguagem, quase que não era mais a mesma espécie! O tamanho da nossa culpa, do nosso medo, dos sentimentos de inferioridade e superioridade envolvidos era uma coisa tão tremenda, que a gente passou pelo menos um ano, dos dois anos e meio que a gente ficou lá, tentando entender como se encontrar na diferença.
Coisas bem simples, como você saber que você tem sete calças no seu guarda-roupa, que você tem dez pares de meia e que aquela pessoa foi assistir a sua peça porque não tem meia e a sua peça tem fogueira, então ela vai lá pra esquentar o pé. Então, são relações muito loucas, de uma culpa muito grande, profunda e uma distância enorme, um vocabulário totalmente diferente, que até a gente se entender, ali, como ser humano, demorou muito.
A gente questionou, por exemplo, as relações de amor. A gente se apaixonou por albergados, rolou caso de amor por algumas meninas e isso, em nenhum momento, foi vivido, porque tem uma separação, uma impossibilidade do tesão, um perigo muito grande de um encontro amoroso entre a classe média e um miserável carrinheiro. Tem o problema do alcoolismo, que está ali no albergue e não vai poder te sustentar...


Portal — "Bastianas" conseguiu traduzir isso tudo?


FADEL — A gente passou uns perrengues. A gente não tem a dimensão de saber se o espetáculo conseguiu traduzir. O retorno do público é de que a peça tem uma sensibilidade diferente por ter sido gerada dentro do albergue.


Portal — Vocês apresentaram em outros espaços?


FADEL — A gente ficou em cartaz no Centro Cultural São Paulo, agora...


Portal — Mas e quanto a outros espaços livres, abertos?


FADEL — Apresentamos em algumas cidades, em praças não tão expostas ao barulho, em praças um pouco mais recolhidas, porque a gente não usa microfone e tem momentos mais delicados do espetáculo, então a gente tem um limite. Então, a gente sente que ganhou uma sensibilidade justamente porque o nosso coração abriu um pouquinho, ali, no sentido cristão-sofisticado — não no cristão-católico, burro, da culpa. O contrário, que é o da não-culpa. A gente conseguiu dissolver um pouco, entender um pouco a armadilha na qual nós nascemos.


Ampliando a própria realidade


FADEL — Eu nasci numa família, meu pai era malufista — agora, graças a Deus, abriu bastante a cabeça dele porque ele é um ser em transformação, maravilhoso —, mas eu passei a minha infância inteira sem ouvir falar nas histórias de ditadura, nunca participei das histórias desses presos políticos, dessas torturas, dessas histórias todas do país. Até os meus 16, 17 anos, eu sempre fui alienada. Quando eu vim pra São Paulo, comecei a fazer teatro.
Às vezes eu passeio pelo centro da cidade e me sinto uma estrangeira no meu país, sinto que o país é muito mais "daquela gente" do que meu, que fico passando de um teatro para outro. Então, essa legitimidade é dada pela vontade de conversar com as pessoas, de procurar as pessoas, os irmãos que estão na rua, os irmãos que não vão ao teatro. Estou falando de irmãos mesmo, porque a gente sabe que é aquele nêgo que não vai pagar nem dois nem dez reais. Não é questão de pagar, é que aquilo está distante da realidade dele. O que está próximo da realidade dele é a novela das oito, das nove e das dez, que é aquele alívio, aquele sossego do perrengue que ele vive o dia inteiro, vendendo coisa no semáforo e a puta-que-pariu.


Portal — E no entanto, a gente percebe que esse sujeito está super-aberto à magia... Proponha-se o elemento mágico que for, ele entra, ele embarca, ele aposta. Ele tem uma relação de "fidelidade" muito maior, grande parte das vezes, do que a dos amigos que vão assistir a gente...


FADEL — Claro! O que dá legitimidade é o fato de ter uma grande parte da população que está ali e quer falar com eles, simplesmente. E isso é mais do que legítimo. Eu quero falar com eles e vou lá pra rua pra falar com eles! Na verdade, falar o que interessa, onde interessa falar. Dentro do aspecto da diversão, veja como é divertidíssimo fazer essa festa, essa história na rua. É mais divertido quando pega um negócio na rua do que quando pega no palco. É mais divertido! Não sei... parece que aquilo está totalmente atrelado à pulsação da Vida... você não precisa se isolar da vida pra realizar essa magia. Você pega o nêgo no momento mais da vida dele e, dentro daquele caminhar dele, ele expande a consciência dele.


Portal — Dentro da própria realidade dele...


FADEL — Acho que isso tem um valor. Uma coisa é você se arrumar pra ir pro teatro e outra coisa é o teatro invadir a essência do seu ser, invadir o teu almoço, estetizar o teu cotidiano. Eu estou falando de mais ou menos valioso, tralalá, isso é uma grande bobagem, eu sei. Mas como a gente não tem um vocabulário pra falar, a gente acaba às vezes comparando. Mas não é uma questão comparativa.
Pra valorizar o teatro feito na rua... olha só, quando você vai e se senta no metrô, esse teatro de todos os dias, é uma delícia ficar olhando pras pessoas, tentando imaginar o que elas estão pensando, essa velha história, isso é o que interessa, porque, na verdade, se nós fôssemos realmente felizes e sofisticados seres humanos pacíficos e amigos e amantes e aquela paz e aquele paraíso sonha, teatro seria uma coisa simplesmente de 24 horas por dia!
Dança seria isso aqui que eu estou fazendo, a minha dança! Ou como eu falo ou como eu estou aqui vestindo essa máscara e falando com você. Ou seja, seria simplesmente o modo de as pessoas existirem. O que eu gostaria mesmo era de acordar dançando, cantando, tocando, fazendo teatro, pondo e tirando máscara e tal, e fosse dormir feliz. Fosse isso! Escolher o prato, o que comer, as cores, a organização do prato, onde eu vou, onde eu não vou, como eu caminho o meu andar, pra dentro, pra fora, o penteado que eu faço, como eu falo "oi", o meu sotaque, a minha maneira de tudo, não é? Eu tenho muito mais vontade da Arte por aí do que a arte do gênio ou daquele que inventa alguma coisa...


Sementes sobre a pedra


Portal — Será que há algum artista, que tenha se sentado, acendido um cigarro ou um incenso, colocado uma música de fundo, se isolado e decidido: "vou criar uma obra-prima que me transformará num gênio", Fadel? Não creio. Penso que ele, no máximo, coloca ali, naquele espaço-tempo, com todas as fibras do seu coração, tudo o que precisa dizer pro mundo. Mas é quem recebe o recado, seja lá quem e porque for, que o compreende e o considera "gênio"...


FADEL — Exatamente! Mesmo o Stanislavsky, o Brecht e todos esses coitados, que ficam submetidos à nossa mediocridade, de não digerir as coisas e cagar a nossa própria bosta, entendeu?
Não, a gente já cata e vomita. Aí, então, o coitado do Stanislavsky, na legitimidade dele, lá no teatrinho que o pai dele montou pra ele, na casa dele, estava lá, fazendo as experiências que cabiam a ele, e que a gente deveria considerar como experiência de uma pessoa, numa determinada época, e que nos servem como exemplo de como é possível experimentar com profundidade... sabe? Isso devia legimitar a nossa liberdade.
Não, aí o cara vem e é criticado, é descritidado, é amado, é louvado... puta-que-pariu! Às vezes a gente perde uma vida inteira falando sobre uma vida que já passou e não cria a continuidade dessa vida, dessa semente. Você fica ali, estudando a semente, não bota ela em terreno fértil pra gerar o fruto. O cara lutou a vida inteira pra ser uma semente e aí a gente pega e põe essa semente em cima duma pedra, pra ficar observando ela. O negócio não vai dar nada!
É claro que deu milhares de frutos pra quem soube olhar. É que nem essa discussão sobre teatro-dança. Que coisa irritante. Meu!
Boa dança é teatro e bom teatro é dança...! Boa vida é dança, boa música é dança! Eu estava vendo um vídeo daquele grupo inglês, acho que se chama DVDez, que fez uma coisa chamada "Peixe Estranho". É um monte de bailarino com um humor tão sofisticado, muito teatrais, muito bons atores no sentido do jogo, em termos de relação, uma conexão muito boa, bons atores não no sentido diva, mas no que toca à comunicação entre eles. Muito teatral. E eles vão escarafunchando umas merdas do ser humano, do amor, de relação, sem uma palavra! Só com relação corporal, um negócio alucinante. Quem vai vir me falar sobre teatro-dança?
Deixa criar, deixa abrir! Teatro? Dança? Não importa. Interessa que isso aqui eleva o ser humano, me pega por uma coisa que eu vejo todo dia. Meu! Eu olho e digo: é assim, é isso aí, mesmo. Eles conseguiam relevar as leis do movimento amoroso: rejeições, atrações, os conflitos, superbonito mesmo. Então esse negócio de "teatro pra isso, teatro pra rua", etc., eu acho um saco isso tudo. De repente, isso pode até tolher... Vai e faz!


O jogo está no jogo!


Portal — É possível levar um "Romeu e Julieta" ao pé da letra, sem parecer, por exemplo, se tratar de uma montagem para palco apresentada na rua, sem considerar o diálogo com o espaço...


FADEL — O próprio Sheakespeare não fazia o teatro dele, com o barulho do rio, os atores tendo que ter potência pra encarar aquelas pessoas gritando, comendo e aplaudindo no meio? Talvez tenha sido até mais árduo ali do que até o teatro de rua, hoje, no meio da Praça da Sé.
Hoje sabemos que era um espaço aberto, com um palco que invadia o público, ou seja, não era um palco chapado, com muita barulheira da cidade, não é? O rio, tudo ao redor não era uma coisa silenciosíssima, com o público se manifestando, metendo o bedelho... então, imagina esses atores! A gente tem, no mínimo, um híbrido aí. Não era um teatro em palco, entendeu?
Então mesmo isso dá pra você desconfiar. Eu faço "Romeu e Julieta" onde o meu coração mandar, onde esse caminho tiver um coração! Não precisa de autorização, eu acho mais do que possível. Mas obviamente isso não deve ser feito por uma atitude "experimental", "heróica" no sentido de "ah, eu vou ver se é possível", dentro de uma visão acadêmica. Não, tem que haver uma postura de "eu gosto pra caralho deste texto, acho esse texto lindo, acho que funciona, tenho a maior vontade de fazer essa história de amor na rua, numa cabana em cima duma árvore, porque eu gosto do texto, acho que vai pegar", sabe?
Não por um experimentalismo vão, mas por uma vontade real de artista. Não por uma vontade de pensador, mas uma vontade de artista, de brincar com aquilo, de jogar aquilo como uma bola mesmo, um jogo. O que mata muito a gente são essas experiências intelectuais com o teatro. Não é aí que está o jogo. O jogo está no jogo! Não interessa muito a regra... É tão divertido ver um jogo de tênis como ver gente pulando a cavalo, quanto ver uma formiga se afogando numa poça, é tudo interessante, contanto que o jogo esteja vivo.
Isso é que vai matando... Dizer que teatro de pesquisa é chato não é verdade, porque o jogo proposto por essa pesquisa, por mais que não esteja pronto, se está vivo é um tesão de ver. Você vê risco, gente experimentando em risco. Risco intelectual não existe! Quem fica pensando não se coloca em risco. Quem vive em função do que pensa se coloca em risco.
Mas você tem que ter ação radical em relação àquilo que você pensa. É aquilo que está no prefácio do Artaud: "foda-se qualquer filosofia que não seja prática", que não seja o seu modo de viver, aí não é nada. Pelo contrário: é um cadáver mesmo. Então, esse teatro que entra em cena pra pensar é chatíssimo... Ir pra rua pra estudar a rua? Não! Ir pra rua pra jogar, pra fazer o samba rolar!


Política pública é arremedo


Portal — E qual é a desse novo trabalho que a Cia. São Jorge de Variedades está querendo levar para a rua?


FADEL — Ah, a gente está sentindo um "Dom Quixote", sabe!? Acho que a gente vai sair com uns cavaleiros da triste figura... E talvez nós dez, onze ou doze, vamos todos estar em cena como dons quixotes brigando com outdoors ou fazendo declaração de amor pra postes de luz, pra lua, pra Mãe Terra... Eu estou ecológica, com muita vontade de ser ecológica...


Portal — A direção vai ser tua?


FADEL — Escuta, eu quero entrar muito forte como atriz. Eu estou devendo isso pra São Jorge, porque nas "As Bastianas" o processo com certeza foi delicado, primeiro porque é um espetáculo que eu não dirigi, foi o Luis Marmora quem dirigiu, o que significou pra mim um momento de adaptação. Agora eu queria entrar com mais força desde o começo. Ou talvez dirigir, não sabemos ainda! Talvez haja uma direção coletiva, acho que a gente está com uma maturidade pra conseguir isso, inclusive, por exemplo, com cada um dirigindo um trecho do espetáculo, criando uma multi-linguagem, sem uma unidade estética, mas uma unidade conceitual justamente nessa colagem.
Mas a nossa vontade é ir pra rua, assim como a gente foi para o albergue, porque a gente estava sem teto mesmo! Então a gente se albergou. E a gente agora está indo pra rua exatamente porque nos parece que não há outra saída. De alguma maneira, a gente está sentindo que um isolamento vai acontecendo. Está tudo lindo: a gente tem quatro espetáculos prontos mas não tem um tostão, a gente só tem dívida. Então beleza, vamos passar o chapéu e pedir comida!
Nós vamos pleitear a Lei de Fomento, mas isso nos dá o que? Seiscentos, setecentos reais por mês, que, às vezes, eu gasto em gasolina pra vir três vezes por semana a Santo André, ou mesmo em transporte coletivo, ou seja, não sustenta. A gente está sentindo que, se a gente fizer uma ação mais potente, radical, mais forte, a gente vai ter um chapéu até melhor do que qualquer... sabe, a história da auto-suficiência?!


Portal — A Cia. Bonecos Urbanos, por exemplo, descobriu e formou um público no Parque da Água Branca, segundo eles, com chapéus consideráveis...


FADEL — Exatamente. Tesão! Esse negócio de política pública é também um arremedo, não é? O Estado tem que assegurar os artistas?


Portal — Depender disso é um arremedo...


FADEL — E a gente depende! E fica tentando aprovar lei, papapá e um monte de coisa e tal, porque não tem jeito, porque se não tiver isso o nosso público não nos garante. Se a gente resolve cobrar 20 reais, quem vai? Eu já não posso ir! A classe média já não pode ir por 20 reais. Não está dando mais pra comer fora, quando você precisa. É um negócio que está se amarrando, então, você tem que cobrar aqueles 10 reais, meia é cinco, e se você tem cem pessoas, você tem 500 reais, então você não paga nem um ator com uma apresentação. Às vezes é raro você colocar cem pessoas ali dentro, então o negócio vai se amarrando, você não vive da sua bilheteria...


Portal — E aí você olha pra rua e vê que ela está cheia de gente...!


FADEL — Então vamos pra lá! Se todo mundo der 1 real... sabe assim? Pode ser que eu esteja falando uma grande merda quando falo sobre essa coisa da auto-suficiência, mas a vontade que dá é a da gente fazer uma coisa tão potente, que a própria população precise e nos queira e nos alimente com seus 2 reais ou 50 reais ali, no nosso chapéu! E que a gente possa ter a coisa da política pública, mas sem depender única e exclusivamente dela, pra não quebrar as pernas como a gente quebra quando não pega o Myriam Muniz, o Petrobrás nem nada. A São Jorge não pegou nada!
O que acontece? A gente se amarra e a nossa produção fica capenga. Aí vai virando uma bola de neve, porque com uma produção capenga a gente não consegue pagar uma produtora, não consegue vender, não consegue fazer a manutenção dos espetáculos... A coisa vai ficando pobrinha, no mau sentido, porque o espetáculo foi concebido com uma determinada luz e tem que ser feito com dez refletores porque você não consegue mais alugar! Então aquilo fica ruim e os nêgo não pagam bem, também! Tudo começa a ficar bem esquisitão.


Retomar a verdade do mundo


FADEL — A gente precisa ir reconquistando esse perigo, essa diferença com o cinema e a televisão, corpos super-prontos para a expressão forte, pra que seja impossível não parar pra olhar, que seja impossível não dar o que se tem na carteira pra esses nêgo! Sabe assim? Batalhar pela excelência do nosso trabalho, que a gente já batalha, mas cada vez com mais afinco? Pra gente reconquistar o apoio maciço popular. Maciço! Eu estava vendo naquele livro do Nerino, sobre circo, quando um circo saiu de uma cidade e aconteceu um monte de suicídio.


Portal — A vida esvaziou...


FADEL — A cidade estava acostumada com aquilo, lá. Eles estavam lá há muito tempo e tiveram que sair de lá, por algum motivo, e aí rolou um monte de suicídio na cidade.


Portal — É magia!


FADEL — As pessoas se matarem porque não têm aquilo, porque de repente a vida perde toda a significação, se não for dançada, cantada e vivida nas suas potencialidades de máscara. Eu sinto que é aí que está a força real. Aí é que está a magia mesmo. Só que a nossa sociedade está toda organizada contra a magia. Tanto é que o feminino, na nossa sociedade, está cada vez mais fora da parada. As bruxas não estão soltas! Outras bruxas é que estão soltas...
Eu estou sonhando algo, estou sonhando lá no paraíso, mas você paga o que for porque você precisa daquilo — não como uma droga, mas como a visão aberta, a possibilidade da alegria, da colheita do trigo, de fazer a comida, cantar, botar aquela pitada daquele tempero especial...
E a gente está na cultura do fast food, não é? Totalmente na contramão. O fast food não dá dinheiro pra gente, então a gente vai pro estrado! E o nosso Estado é o que é. A gente está vendido, como eu comecei a conversar com você. Todos nós estamos vendidos. A gente precisa lutar pra garantir alguma liberdade, lá no fundo das nossas consciências, porque tem os filhos pra sustentar e o perigo de amanhã não ter essa comida.
A maravilha do teatro de grupo está aí, porque eu sei que, se eu passar fome, vou bater lá na sua casa e você vai ter certeza de que seus filhos nunca vão passar fome porque você vai bater lá na minha casa. Agora, em algum lugar, tem o risco de todos nós empobrecermos a um determinado ponto que a gente não tenha na casa de quem bater, ai! Puta-que-pariu, será que isso vai acontecer?
Não, não vai acontecer porque somos-muitos-somos-fortes, somos-muitos-somos-fortes! E parece que a gente está guerreando contra alguma coisa, e a gente está: contra essa mentalidade não-mágica, não-religiosa no sentido elevado da palavra religião...


Portal — Sagrado.


FADEL — Eu sinto que é aí que está a nossa força: na retomada da verdade sobre o mundo. O mundo não é um monte de matéria acumulada, até os cientistas sabem disso, pois já estão começando a admitir uma inteligência organizadora e presente nos elementos.
E na cidade a gente não tem terra boa, não tem ar bom, não tem sol bom... entendeu? Aí realmente a magia é colocada embaixo da avenida 23 de Maio, é encarcerada aqui embaixo da avenida dos Estados, os nossos rios, as nossas águas estão todas debaixo dessas avenidas masculinas, desses viadutos, dessas coisas, não é? Então a arte vai junto com esses rios! Tanto é que, muito simbolicamente, o Teatro da Vertigem vai para o Rio Tietê, porque existe uma comunhão muito grande entre o teatro e essas águas apodrecidas que, mesmo assim, resistem e continuam correndo, e tudo o mais.


Entrevista concedida a Carlos Biaggioli, em 10/06/2006,
na Escola Livre de Teatro de Santo Andre (SP)

Entrevista com Luis Alberto de Abreu


Fonte: Portal da Cooperativa Paulista de Teatro


Luís Alberto de Abreu — A minha experiência com teatro de rua não é muito grande. Começou em Tiradentes (MG) com um projeto muito interessante sobre a história da cidade e das personagens que tinham passado por ela. De certa maneira era uma celebração aos moradores de Tiradentes, os que já tinham morrido. Isso era feito na rua e o cenário era a própria fachada da casa dessas pessoas. Para mim, essa foi uma experiência muito importante.
Depois eu comecei um projeto de pesquisa do teatro de rua com a Claudia Schapira aqui na ELT, onde a gente pesquisou sobre a dramaturgia de teatro de rua. Daí pra frente, eu tenho me aproximado cada vez mais.


Fora todo o estudo da tradição do teatro brasileiro, que tem muito a ver com a rua, das festas, de uma liturgia de rua, de encenações de rua que seria muito interessante a gente recuperar para essa nova prática de teatro de rua que está havendo no Brasil.


Portal — No ano passado, a convite do Movimento de Teatro de Rua de S. Paulo, Amir Haddad aventou que, hoje em dia, a saída para o que ele chama de "teatro morto" seria o teatro de rua, pelo resgate do contato do artista com a sua "matéria-prima"...


Abreu — O Amir Haddad é um sujeito respeitável. Concordo com a opinião dele no sentido de que na rua a gente tem um contato com outro tipo de público. E nesse sentido a gente aprende muito. É um público completamente liberto, que não está preso pelo ingresso nem pela convenção educada de se assistir e de se aplaudir no final. Então, para o artista, é muito interessante porque, na verdade, ou ele segura e interessa a pessoa de fato ou ela vai embora, porque tem outras coisas para fazer.
Nesse sentido, o teatro de rua é muito rico. Esse público é muito rico. E eu concordo com o Amir Haddad que o teatro de rua pode renovar completamente a relação teatral que existe. Eu não sei se o palco italiano está morto ou não. Mas acho que muito do maneirismo, tanto na dramaturgia como na encenação quanto na interpretação, e muitas das convenções que ele adquiriu estão mortas. O teatro de rua tem força para sacudir o palco italiano.
Aliás, quando a gente fala de teatro de rua, a gente devia falar de teatro de palco italiano, porque o teatro mesmo é rua. Essa relação humana é fundamental, isso é o Teatro. O teatro italiano é só uma parte desse grande teatro, dessa grande relação humana direta que existe no mundo.


Portal — Tem-se discutido muito da questão da dramaturgia especificamente direcionada para a rua, que mistura um monte de ansiedades em nome de teatro de rua. Houve colegas que citaram o fato de hoje em dia ter virado moda confundir teatro de rua com bumbo, perna-de-pau ou nariz vermelho – que também são ou não são dramaturgia para a rua. Como o senhor vê essa questão, dentro e fora do Brasil? Há alguma luz apontando nesse sentido?


Abreu — Na pesquisa de dramaturgia da rua ou nos apontamentos que eu tenho sobre dramaturgia para a rua, a minha referência é sempre as festas populares, o teatro de rua das cheganças, da marujada...
Eu pego o Mário de Andrade e fico lendo essas dramaturgias, esses grandes espetáculos de rua, e fico tentando entender – já que a gente não tem mais, ou está muito distante – o pouco que ficou. Isso não é nem mesmo uma pálida imagem do que era mesmo no século 18.
Eu fico tentando imaginar qual seria a dramaturgia de rua. E eu tenho aprendido muito, ali, no sentido de que a poesia é um elemento muito forte para a dramaturgia da rua. Acho que quem trabalha na rua não pode descurar da poesia, que é um elemento muito forte. A música é um elemento muito forte, o corpo é um elemento muito forte. Isso sempre foi muito forte, na rua.
Nesses espetáculos populares, que era o nosso teatro de rua, isso orientou toda uma dramaturgia. Como eu disse, eu não conheço muito, não tenho muita experiência sobre teatro de rua, mas toda vez que eu penso em fazer ou vejo espetáculo de rua, eu sempre foco nesses elementos fundamentais que é a poesia, a música (o canto, obviamente) e o corpo. Isso me parece que é fundamental.
Todas as outras coisas são acessórios muito interessantes.


Portal — Inclusive o texto.


Abreu — O texto vem no canto, vem na narrativa. A gente pega, por exemplo, uma chegança ou uma nau catarineta, é tudo em versos. O texto está no próprio canto e, quando não está no canto, está nos diálogos, que são versificados, como acontece no teatro vicentino, que tinha um pé no palco e outro pé na rua.
A rua estava muito próxima do teatro de Gil Vicente. Quer dizer, esse teatro italiano e espanhol, esse grande teatro ibérico, ele tem muito a ver, a gente pode aprender muito com ele. Eu não iria reinventar o teatro de rua.
Eu iria me aproveitar desses fundamentos que estão aí e eu tentaria retrabalhá-los, na dramaturgia, para o tempo de hoje, para as relações de hoje. Obviamente a gente aprende a fazer teatro de rua fundamentalmente fazendo, não é? É dessa relação. Mas eu acho que não custa a gente ter alguns parâmetros.
O teatro ibérico dos séculos 16 e 17 é fundamental, para mim, porque estava muito próximo do teatro medieval, que era rua. E as festas populares. Conseguir ver uma nau catarineta e abstrair qual é a dramaturgia daquilo, como aquele espetáculo foi pensado para segurar esse público flutuante, que passa.
Obviamente aí tem uma série de outros elementos, corais, que são muito importantes também. Figurinos. Ocupação do espaço. Tem tudo isso, mas são elementos que compõem a dramaturgia.


Portal — Na cidade de São Paulo, o Movimento de Teatro de Rua (em consonância como movimento da Bahia, do Recife) vem buscando um pensamento, propiciando que os grupos atuantes se conheçam, se assistam e discutam sobre seus trabalhos sem critérios de julgamento. Qual é a tua opinião sobre a importância disso?


Abreu — É precioso um movimento nesse sentido. Na época em que eu comecei a fazer teatro, no final da década de 70, o teatro era feito tão-somente, invariavelmente no palco, com pouquíssimas experiências de teatro de rua.
E, de repente, o palco, as casas de espetáculo são limitadas, em número, inclusive. Não estão respondendo mais à efervescência cultural que existe nesse país. Existem muito poucos espaços para as necessidades do teatro.
Eu acho que um movimento de teatro de rua é uma resposta, mesmo. Quer dizer, a gente não precisa de um espaço-teatro, o Teatro não é um prédio, ele é um lugar que se convencionou para esse encontro importante, ritual e fundamental. Essa consciência quem nos trouxe foi os espetáculos desses grupos que foram para a rua, falando: não, o teatro é muito mais.
Como dizia o Calderón de La Barca, "o mundo é o teatro". Eu posso transformar qualquer espaço em teatro, desde que eu tenha um espetáculo e um público. Então isso foi muito rico, e abre um caminho enorme para o trabalho do artista, de ir ao encontro do público.
Teatro convencional, em palco italiano, a 60 reais o ingresso? Impossível. Uma cultura não sobrevive com isso. Mesmo com 200 ou 300 teatros desse, a sessenta paus não se faz cultura. Nem nesse país e nem, talvez, em qualquer país da Europa. A saída para a rua é o diálogo direto com o pulso do público, com o pulso da contemporaneidade. Daí saem muito mais coisas do que ficar encerrado dentro do palco italiano.


Portal — E não somente a questão do custo do ingresso. Mas também a questão de o teatro de rua interferir no cotidiano, como é o caso do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos ou do Grupo XIX de Teatro, por exemplo, que se propõem a enfocar e transformar a realidade naquele momento, criando determinados estados-de-espírito das pessoas seja numa vila industrial ou no Viaduto do Chá. Há esse tipo de importância. Agora, para que isso venha mais e mais à tona, qual é o seu ponto-de-vista sobre políticas culturais voltadas para o teatro de rua.


Abreu — Política cultural é importante, mas a questão cultural só pode ser resolvida pelos produtores culturais, ou seja: os grupos que fazem. Eles não devem esperar isso. Muito pelo contrário, eles devem começar a fazer, a se articular e a exigir.
O primeiro ponto, fundamental, é fazer e, a partir daí, se articular para exigir uma política cultural, que não virá "do alto". Não é político que vai resolver a questão cultural no país: são os produtores de cultura.
O primeiro estágio é fazer, mesmo, essa interferência direta. Isso é fantástico, porque cria realmente para o país uma paisagem cultural, além da paisagem de prédios, de pessoas andando na rua e tal. É uma paisagem cultural, o que é de fundamental importância.
Uma pessoa caminha pelo Viaduto do Chá, por exemplo, e passa por uma experiência diferenciada que ela não tem na vida e não vai ter em nenhum outro veículo de informação. A exigência de políticas culturais, portanto, é fundamental, mas tem que partir de uma articulação dos produtores de cultura — e não do discurso de "pedir verba".
Não. Precisa-se pensar projetos. Uma política cultural, como foi pensada e feita o Programa de Fomento para o Teatro na Cidade de São Paulo. Aí sim, o produtor cultural ele tem uma força, de colocar, de exigir e de discutir uma verdadeira política cultural.
As políticas culturais geralmente são abarcadas por políticos. Não. É questão, é desafio para os produtores de cultura.


Portal — Qual é a tua opinião sobre leis de incentivo, que colocam nas mãos da "lei do retorno", da iniciativa privada, os critérios sobre o que é e o que não é bom?


Abreu — Eu não vejo o que essas leis de incentivo trouxeram de benefício para a cultura. Trouxeram benefício talvez para alguns produtores de cultura, talvez para alguns proprietários de teatro ou de cinema.
Mas eu não vi a grande transformação que tenha vindo através das leis de incentivo. Não estou falando para se acabar com elas, não. Mas para nortear a produção cultural por outros caminhos. Apoio por outros caminhos, por outras fórmulas. Aí eu acho que são os produtores de cultura, mesmo, que vão ter que fazer isso.
Senão, a gente corre o risco de ter muitas leis de incentivo, com muito dinheiro e com muito poucos produtores culturais com acesso a elas. E, na verdade, é isso o que acontece, não é? No cinema, no teatro.
Tem uma infinidade muito grande de grupos de teatro, de gente querendo fazer cinema, mas que não tem acesso aos benefícios das leis de incentivo. Então, que política cultural é essa? Restrita, não é? É necessário uma política cultural que atenda à produção e à qualidade desta.


Portal — À produção e à pesquisa também...


Abreu — Com certeza. Não há como separar uma coisa da outra. Não dá para chamar de produção a reprodução: "não, então eu vou montar tal peça". Não, isso não é pesquisa. A pesquisa é novos caminhos, um novo contato com o público, novas formas do fazer teatral me parece que é muito mais importante do que uma lei de incentivo.
Eu pego uma Lei Rouanet e, se eu conhecer aí algum grande empresário interessado em escorregar uma verba, ali, então eu consigo produzir. Quem não tem esse acesso não consegue. Ou quem tem um espetáculo que não seja do interesse dele.
Principalmente se for teatro de rua. Que grande empresa está interessada em teatro de rua, onde grande parte do que é feito não é previamente estabelecido? Corre o risco de a Shell patrocinar um espetáculo de teatro de rua em que o sujeito vai falar contra a Shell!
O teatro de rua é muito livre, nesse sentido, quanto à interação direta com o público. Isso aí talvez não interesse a quem vai trabalhar com uma lei de incentivo. Eu não diria para acabarmos com ela mas o foco fundamental não deve ser as leis de incentivo, com certeza.

AMOR MONTADO NO TEMPO - Sonoridades Amorosas



Por Cristiano Gouveia


PRÓLOGO


O Núcleo de Teatro de Rua da Escola Livre de Teatro, ao final do ano de 2005, iniciou um processo de pesquisa, tendo como fonte um tema e uma linguagem. A provocação lançada ao grupo por Ana Roxo, coordenadora do núcleo, era de que o tema fosse o AMOR. E que os trabalhos práticos se desenvolvessem buscando sempre uma linguagem SUTIL na rua, buscando assim, dentro dessa sutileza, não cair de cara na primeira imagem que nos vem à cabeça quando se fala em teatro feito na rua, nas pernas de pau e nas grandes personagens eloquentes.


À medida em que cenas e intervenções eram criadas e improvisadas pelos atores à partir do tema proposto, surgiram também algumas necessidades.


DO SILÊNCIO AO SOM


A pesquisa sonora dentro do Núcleo, surgiu à partir de uma dessas necessidades do grupo, à medida em que o canto, a música e as primeiras células de percussão começaram a surgir.


À convite da Ana (a quem agradeço muito por abrir essas portas), iniciei com o grupo um trabalho musical, utilizando como base de nossa pesquisa a voz e seus desdobramentos no canto e na fala. A partir desse primeiro passo, surgiram as primeiras dúvidas: quais as diferenças entre a fala do ator dentro do teatro e na rua? Como cantar? Como podemos nos utilizar da sutileza na rua? Há espaço para o silêncio?


NA COVA DOS LEÕES


Embriagados por essas e outras questões, nasceu o espetáculo O AMOR MONTADO NO TEMPO, composto atualmente de três peças: Boneca de Madeira, Começo do Caminhar e Quem Paga o Pa(c)to?, onde poderíamos, enfim, experimentar, experienciar todas essas provocações na nossa "cova dos leões", frente ao público. Não aquele público que se pré-dispõe e paga seu ingresso e vai assistir dentro de um espaço fechado, mas aquele que se dispõe no exato momento em que decide assistir e não continuar caminhando pela rua.



Em Quem Paga o Pa(c)to?, peça que narra os enlaces e desenlaces de um casal, a proposta sonora vem de encontro com o velho ditado: "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher." Então, toda sonoridade que a peça precise, é executada vocalmente pelos dois atores em cena. Apenas no início, onde não há ainda o pacto, há uma música cantada pelas personagens Ademir e Giovanni, dois amigos, desses de buteco. Após o encontro de Ademir e Dulce, e seu casamento, não há música, efeito sonoro, que não venha das vozes do casal.


No decorrer , há somente uma trilha gravada, uma música do Roberto Carlos mixada com um jogo de futebol. A trilha externa vem neste momento, por ser o momento da descoberta de como o tempo (fator externo) pode corroer esse pacto. Mas mesmo a trilha gravada é operada pelos dois atores.




Em Boneca de Madeira, que conta a trajetória de 3 mulheres, a vontade era levar a provocação inicial de como utilizar o sutil na rua à fundo, abusando dos sons de pequenos sinos, escaleta, e, principalmente, do silêncio. Afinal, na trama uma das personagens, depois de experiência traumática, não fala. Emudece. E resolvemos levar esse silêncio pro todo. Mas é possível silêncio na rua? Essa pergunta ainda nos provoca, mas com as experiências práticas nas apresentações, mesmo que ainda sem resposta clara, constatamos que o silêncio SIM pode estar presente, pode ser construído em nossa roda nas praças por aí. Um silêncio como caminho para abrir nossa escuta.


Outra vertente era essa voz que pode ser mandada pra roda do público, ou simplesmente numa conversa, uma relação com dois ou três, pequena, sem esquecer do todo, mas confiar também nessa relação.


E cantar. Cantar canções, sejam elas existentes (como a "Nuvem de Lágrimas"), sejam elas criadas para o tema (como a canção "Ana, Humana", canção criada por mim para outro projeto que não vingou, e que se encaixou perfeitamente nesta história, mudando até o nome da personagem), infantis (como "Santa Clara"), ou canções que vão silenciando à medida que se é tocada (como a "Cortei o Dedo", tema da personagem que não fala). Para serem acompanhadas por um violão nas mãos de um homem, ora apenas músico, ora personagem, que entra para dar o contraponto nesse universo de trajetórias femininas criado dentro da roda.




Por fim, em Começo do Caminhar, peça que fala de um menino, sua mãe e um homem "perfeito", e a relação entre eles, deles com o mar, e seus desdobramentos, a opção de sonoridade foi escolher uma única canção, a música "Lugar Comum", de Gilberto Gil, e também brincar com seus desdobramentos dentro da peça. É a música que a mãe sempre cantou para o filho, que acompanha essas pessoas desde suas infâncias. Como diz a canção: "tudo isso vem, tudo isso vai pro mesmo lugar de onde tudo sai."




Ainda em temporada, AMOR MONTADO NO TEMPO, tem um retorno positivo, até pra visualizar pontos que ainda não tocamos, ou que tocamos pouco. E que questões como a utilização da fala, busca de projeção da voz em geral, como melhor utilizar cada espaço que se chega, ainda estão presentes na nossa pesquisa musical.


E nosso grande passo é de que, antes leões, percebemos o público agora como parceiros construtores desse nosso começo do caminhar do núcleo de teatro de rua.