Nùcleo de Teatro de Rua ELT

Tuesday, April 18, 2006

Um Teatro Para a Rua de Toda a Parte

por Valmir Santos
(retirado do Caderno da ELT nº 1 - Junho de 2004)


Até a pouco visto de soslaio, tal irmão caçula embirrento que tenta espiar a roda de "gente Grande", o teatro de rua, da rua, da praça, enfim, eis um teatro que cada vez mais caminha com as próprias pernas, para o que der e vier, e ressignificando seu espaço. Grupos como o gaúcho Tribo de Autores Ói Nóis Aqui Traveiz, o mineiro Galpão, o carioca Tá na Rua, o sergipano Imbuaça e o paulista Parlapatões acumulam, cada um, mais de uma ou duas décadas de história. Eles atravessaram períodos do grau zero de políticas públicas para o setor e hoje estão ombro a ombro com outras companhias estáveis, voltadas para uma investigação continuada da linguagem que abraçaram. Ora no asfalto, ora como extenção deste palco ou espaço não-convencional.

Naturalmente, houve uma evolução daquele fazer teatral de cunho mambembe e pobre, no pior sentido. Claro, indissociável o espírito popular herdado da Commedia dell’ Arte, lá no século XVI, para citar uma das fontes, o olho-no-olho com o espectador atraído espontaneamente, mas não se concebe o espetáculo de rua, nos dias que correm, sem que seus artistas dominem as técnicas de interpretação, da dramaturgia, da indumentária, da cenografia e demais elementos, inclusive em benefício da excelência do improviso.

Os grupos citados constituem exemplos de simbiose da linguagem da rua com o palco. Eles surgiram nos anos 70 e 80, invariavelmente tomados pela paixão de um contato direto com o público, de ruptura com um teatro que não chegava aonde o povo estava, como pedia a canção, restrito às salas tradicionais. Um subtexto recorrente era o de cerceamento das liberdades por causa da ditadura militar, que vigorou no País de 1964 à 1985. Hoje, meados do descênio 2000, esse inimigo comum está dissipado. Ok, há a ditadura econômica a substitui-lo, por vezes ainda mais avassaladora. Mas as companhias, as novas e as veteranas, trabalham em frentes distintas, inclusive com uma diversidade mais sustentável porque, justamente, alicerçadas em processos mais radicais, verticais e sofisticados. Não à toa, os grupos Tablado de Arruar e Pombas Urbanas tiveram projetos selecionados pela comissão julgadora do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, lei que revitalizou o panorama teatral desde 2001, repartindo cerca de R$ 6 milhões por ano entre as companhias que aprofundam suas pesquisas.
É aqui que se faz a ponte com o tema Estética e Política na Cena de Rua, demasiado amplo, mas contemplado a contento num dos encontros da Mostra Santo André de Teatro Contemporâneo. A edição de 2003 abrigou os debates sob uma guarda-chuva maior: Periferia e Centro na Representação Teatral. Em comum, os participantes da mesa em questão não descolam a ação estética da ação política, ambas conjugadas na ação criativa. A atriz e diretora Claudia Schapira (do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos), a atriz Renata Zanetha (grupo Folias D’Arte), o ator e diretor Hugo Possolo (Parlapatões), o dramaturgo Luis Alberto de Abreu (Fraternal Cia. De Arte e Malas-Artes e ELT), o pesquisador Alexandre Mate (Teatro Célia Helena e ELT) e o autor deste artigo, que mediou a conversa, pincelamos um painel do teatro de rua contemporâneo, ainda que nos remetendo, necessariamente, aos seus vínculos intrínsecos em nível nacional (com o circo, por exemplo) e universal (a Grécia Antiga).

As participações à mesa de representantes da Fraternal, Folias e Parlapatões são bastante representativas da época atual em que o teatro de rua serve também como subsídio para criações nascidas exclusivamente para um palco italiano ou um espaço não-convencional, como um galpão. Ou ainda vice-versa. Essa percepção é mais nítida nas comédias populares, como o fazem Fraternal e Parlapatões, cada um a seu modo. Este tem sua gênese na rua e, em torno dela, fundamenta seu projeto artístico casado com o circo , a "palhaçaria" (como em Nada de Novo e Sardanapalo, peças do início dos anos 90). Aquela mesmo representando mais em salas, reinventa, sobretudo em seus textos, a herança de João Grilo e Chicó, ops, Matias Cão, os tipos de O Auto da Compadecida, do paraibano Suassuna. As variações narrativas desses heróis picarescos da cultura popular brasileira e ibérica moldam a escrita teatral de Abreu.

Outro fenômeno mais recente é a absorção da urbe nervosa deste século 21, na qual a sobrevivência inclui até a disputa ou negociação de espaço público para a formação de uma mera roda de espetáculo. O Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que tem Schapira e o diretor musical Eugênio Lima entre os seus, toma a filosofia do hip-hop, consciência reverberada, e promove o casamento com teatro, mão dupla que comporta tanta "harmonia na diversidade" em intervenções públicas, plenas de uma urgência que é de outra ordem, humanista, e não aquela aceleração de linha de produção de fábrica, o que seria um espanto para a era do desemprego na qual estamos mergulhados. Uma bem-vinda atualização do agit-prop, agitação e muito barulho por tudo.

Enfim, não se vislumbra aqui a institucionalização do teatro de rua, longe disso. Até porque, trata-se, infelizmente, de área com pouca guarida no Ministério da Cultura. No entanto, festivais como os de Londrina, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio Cena Contemporânea evidenciam inúmeros trabalhos fortalecidos ou recém-trilhados que apontam para inquietações estéticas. É assim que o espírito e o bom combate do teatro de rua, conforme o sertão de Guimarães Rosa, parece mesmo estar em toda parte.

Valmir Santos é repórter de Teatro da Folha de São Paulo.

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