Nùcleo de Teatro de Rua ELT

Thursday, April 20, 2006

Teatro de Rua

por Renata Lemes


"O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence."
Milton Santos



O Teatro de rua vem crescendo significativamente nos últimos anos, não só sua prática, mas as discussões em torno de uma questão fundamental para esta prática: o cidadão e seu espaço. Afinal a praça é ou não é do povo?

O papel que o Teatro de Rua desempenha em nossa sociedade está sem dúvida ligado ao papel da própria cidadania. O Teatro de Rua se insere num espaço de natureza coletiva, diversificada e anônima, mas também um espaço que pressupõe cidadania plena e universal: o direito de ir e vir se efetiva nele. Ressignificar o uso desse espaço é possibilitar e garantir um outro direito: acesso aos bens culturais e meios de expressão. A experiência contínua da ação teatral na rua, permite ao público muitas vezes os primeiros contatos com essa Arte milenar, representativa e originalmente pertencente às ruas e festas populares. Posteriormente numa inversão própria da sociedade de classes, o Teatro se fecha nas salas de Espetáculos, reduzindo o acesso, dividindo por classes os assentos dos espectadores e colocando os atores em lugar privilegiado, sempre num patamar superior. O Teatro na Rua, no entanto horizontaliza a relação ATOR X PLATÉIA – ESPECTADOR X ESPECTADOR – trabalhando num plano estético mais igualitário. Na rua, esse público que é o transeunte, é convidado a jogar, regras igualmente postas: o rapa que passa, o tempo que corre, a sirene, a chuva, o sol a pino, a violência, o arranha-céu, o comércio e a vastidão da cidade, tudo é igualmente compartilhado, numa roda recíproca que se faz e se desfaz como o próprio fluxo da vida das metrópoles.

Criar caminhos para ocupar nossas ruas de maneira criativa, expressiva e coletiva é com certeza uma alternativa importante para que a cidade se transforme, tomando como lógica uma ação relacional igualitária, autônoma e independente, uma ação de pertencimento: O Homem pertencendo a esse lugar e esse lugar que lhe pertence. O teatro de rua se apresenta como ação criativa desse processo, onde o dimensionamento da cidade, social e arquitetônico se redimensionam numa perspectiva de resistência de um povo.O que acontece no Brasil é que por vivermos em condições tão desiguais de acesso a informação e conhecimento não temos a dimensão plena de cidadania, conseqüentemente de seu pertencimento, de sua cultura e espaço. Assim a questão de pertencer e o que se pertence a cada um são abstratos. A rua não é do povo, na medida em que o povo não a ocupa. A rua é que se ocupa do povo: No consumo, na passagem, nas moradias sub-humanas, na violência. A rua é que traga o suposto cidadão. O Exercício de inverter a lógica do ambiente urbano é, portanto um exercício de pertencimento coletivo. Estar na rua numa atitude de autonomia, assim como se dá no Teatro que se faz na rua, é também uma proclamação de ser, enquanto ser cultural e social. Se for possível, e acreditamos que sim, fazer do Teatro parte integrante de nossas ruas, não temos dúvida que principiaremos a construção de uma cidade mais humanizada.

O Teatro de Rua se legitima porque se mistura á cidade, em todos os aspectos que implica o misturar-se: Ombro a ombro, o público vai se aprumando, no prumo desarrumado da rua, ora sentado, ora de pé, ora acompanhando o cortejo, a música. Ali não há paredes, ali o risco é explicito, ali o jogo é revelado, sem ilusões, mas com direito a todas as fantasias. O Teatro de Rua, por sua natureza, acaba por revelar as cruéis disposições geográficas em que estão construídas as nossas cidades, desenvolvendo uma linguagem de um tempo e de um lugar que abriga os múltiplos. O Teatro de Rua é potencialmente a cidade em poema, um poema quiçá desestabilizador, que revele essas condições acostumadas a que estamos, referendadas por um discurso categórico e autoritário, onde prevalece o instituído de cima para baixo. É por isso que nossas ruas se demoram a ser elemento de convívio social pleno, compreendido no sentido de cidadania, palavra hoje muito usada, mas pouco tomada em seu significado essencial: Autonomia.

É assim que compreendemos essa experiência teatral, num processo de ser, de um para o outro, em via de mão dupla, e é isso a que o Teatro de Rua se propõe: Ser esse ritual de passagem, passagem para uma tomada de posição construída coletivamente.

Renata Lemes é atriz e fundadora da Cia. do Miolo, grupo voltado à pesquisa de teatro de Rua.

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