Nùcleo de Teatro de Rua ELT

Saturday, April 22, 2006

Entrevista com Alexandre Roit (em 09 de junho de 2005)

CB — Na tua nova fase, pós-Parlapatões, onde é importante a tua herança de rua?

AR — Em tudo! No México me abordaram, dizendo: nossa, que bacana! De onde você tirou essa idéia para fazer esse espetáculo? É um espetáculo de palhaço, onde eu misturo uma cena que era do "De Cá pra Lá, de Lá pra Cá", um espetáculo de sala, com técnicas de circo. Eu alterno números de circo com uma cena de teatro que amarra o espetáculo inteiro. Eu coloco o público inteiro para participar. É como se fosse uma partida de futebol, onde eu pego um cara da platéia para ser o jogador, outro para ser o goleiro, dois fazem a trave e o público é dividido em torcidas. Então, invariavelmente, o público inteiro participa do espetáculo. De onde surgiu esse espetáculo? É resultado de quinze anos de trabalho! Eu não sei nem se eu consigo fazer outro solo, depois desse. Eu não fiz nada novo, nesse espetáculo. A minha bagagem de 15 anos me ajuda a diminuir a minha possibilidade de frustração [risos], de surpresas desagradáveis, aumentar as chances de sucesso na boa relação com o público para o qual eu estou me apresentando naquela hora. Com exercício, com tempo, com hora de vôo se consegue identificar mais rapidamente para quem e em que condições se está fazendo, bem como o significado daquele lugar. Você antecipa algumas coisas. Não se chega simplesmente no lugar da apresentação, arma suas coisas, faz o seu espetáculo e vai embora. Você faz uma aproximação um pouco mais cautelosa, se procura saber para onde se está indo. E "saber" não é perguntar uma informação técnica, é conversar com quem está na praça. Você é o estrangeiro, o elemento estranho. Por mais que possam existir bons olhos, de quem está ali, naquele lugar, tem que se ter um procedimento muito cuidadoso e cauteloso para se manifestar e se posicionar. Então, a bagagem serve para isso mesmo: cada vez mais se tem um aproveitamento maior daquilo que se está fazendo, com menos esforço.

CB — Onde que o artista erra, quando se presta a fazer teatro de rua?

AR — Não há erro; há pouco aproveitamento.

CB — Não, erra mesmo. Seja na falta de comunicação, na elitização...

AR — Eu vou falar em erro se aquela manifestação for primeira, única e estanque. Se ela fizer parte de um processo, eu não acho que haja erro. Repetição nas falhas, permanecer na falta de qualidade de comunicação, aí você está incorrendo em erro. Conseguir estabelecer um processo dinâmico, de transformação, é primordial.

CB — Os Parlapatões partiram de um trabalho de rua. Vocês iam para a rua, como se diz hoje em dia, para "se jogarem no abismo".

AR — Naquela época, a nossa maior referência era o cara que está aí até hoje, o vendedor da pomada do peixe-elétrico, que fica horas vendendo pomadinha e vai pular o aro de facas. Eu cheguei a ficar 50 minutos assistindo o cara até ele pular naquela porra daquele arco de facas. Que poder de comunicação esse cara tinha com o público para segurar tanta gente por tanto tempo e sem, de fato, fazer nada, não é? Não tinha algo que ele fizesse que justificasse a presença daquelas pessoas. Mas ele conseguia criar uma expectativa, uma necessidade naquelas pessoas, de estarem ali, que era incomum. Isso foi, na verdade, o que nos inspirou. O que a gente acrescentou a isso foi o trabalho de palhaço e eu, especificamente, o de malabarista. Então a gente tentava trazer aquela urgência, aquela premência em comunicar para transformar aquilo que a gente estava fazendo em algo imprescindível para quem estava naquela roda, nos assistindo. A gente tinha que deixar a sensação naquelas pessoas de que, na hora que ela fosse embora dali, ela ia perder algo que ela nunca mais ia poder recuperar. E, acima de tudo, não é o que se faz, mas como se faz.

CB — Como você analisa a atual situação do teatro de rua?

AR — Eu tenho trabalhado muito e acompanhado pouco outras manifestações, mas a coisa que mudou menos, nos últimos quinze anos, que foi quando eu comecei a fazer teatro de rua, é o estabelecimento de circuitos regulares. Isso é um pouco responsabilidade dos grupos, que se rendem aos eventos e aos promotores dos mesmos. Pouco se forma público. Pouco se estabelece uma relação até de necessidade dessa manifestação cultural. Como se está sempre calcando nessa questão de eventos, é sempre assim que vai se estabelecer. Mas a verdade é que, também, hoje em dia se tem mais eventos do que se tinha há quinze anos atrás. Então o cenário mudou. Se foi para melhor ou para pior eu não sei avaliar. A gente vai conseguir avaliar isso daqui a quinze anos. A categoria como um todo, não somente o teatro de rua, vem se profissionalizando, tendo o entendimento de algumas obrigações que existem no que toca à qualidade, à ética, ao comportamento mesmo e de posicionamento. Tem coisas que o artista deve admitir e outras que ele não pode admitir de jeito nenhum. É o famoso "abrir as pernas" para algumas coisas que estabelece o mau hábito de quem contrata. O próximo que ele for contratar ele vai pedir isso, isso e isso e o artista vai dizer: "isso eu não faço". O contratante vai dizer: "como não? Há um mês atrás, o outro fez!" Aí o artista vai pensar: "será que só sou eu quem não faz?"... Isso é uma situação complicada. Mas vem mudando em muitos aspectos a atitude e o comportamento dos artistas. Mas uma coisa é fato: a gente — não só brasileiro mas latino-americano — continua ainda com uma atitude muito colonizada. De um ano para cá eu tenho viajado bastante. Estive na Colômbia e na Venezuela e agora estou indo para a Argentina e o comportamento que a gente reclama da gente aqui se vê nos outros países, também. O que vem de fora é sempre melhor do que se tem em casa. A grama do vizinho é sempre mais verde. Isso é a nossa história, é a história do nascimento dos nossos teatros e manifestações artísticas, que sempre foram baseados em modelos europeus e norte-americanos. Se a gente falar das elites culturais, elas estão com o olhar voltado para os modelos europeus. As atividades de massa estão voltadas para os norte-americanos. Inclusive nossos modelos econômicos são norte-americanos, não é? A maneira como a gente vive e mora, além da necessidade de consumir, isso tudo vem de um comportamento muito norte-americano. É a reprodução posta pelos meios massivos de comunicação que estão aí e a gente não tem como negar. Isso se transfere para a sociedade como um todo e também para a maneira como a gente encara o nosso fazer artístico, bem como para o nosso julgamento do que é bom e do que é ruim. Então a gente vai achar sempre que o melhor é o que vem desses modelos. Nem sempre é consciente esse julgamento, essa avaliação. Mas ela acaba sendo inerente. O esforço que a gente faz para assistir um grupo que vem de fora é muito maior do que a nossa disposição de ver coisas feitas nas nossas próprias localidades. A gente acha que com o de fora a gente vai aprender mais, vai ver coisas com mais qualidade. É quase inerente ao colonizado essa atitude.

CB — Não atuam também nesse sentido as próprias instituições que nos contratam?

AR — É. Mas eu não acho, também, que exista um "desfazer" da produção nacional. Há que se entender quais são as missões desses contratantes, que devem ter os seus estatutos que estabelecem o que eles devem buscar e eu acho que eles devem ser coerentes com essas premissas básicas. Eu não acho que eles julguem qualidade. Claro que eles têm que se preocupar com isso, porque na medida que eles começarem a trazer coisas com qualidade má, eles vão começar a ter menos credibilidade com as suas ações. Mas, ao mesmo tempo, na relação custo-benefício, entre uma coisa fantástica e inexpressiva brasileira e uma coisa boa e que vai dar mais mídia e reconhecimento estrangeiro, não é impossível que a escolha seja feita por essa produção estrangeira. É possível você colocar as duas coisas em comparação. Qual dos dois eu escolho? É possível ter essa dúvida. Não é tão óbvio assim. É lógico que tem que se escolher a coisa nacional porque, no mínimo, artisticamente é muito melhor do que a outra. Então, isso é justificativa suficiente para escolhê-la sem pensar. Mas não é só na qualidade artística que ele está pensando, mas também no retorno institucional que ele precisa ter para aumentar a credibilidade dele e trazer poder para ele. Ele precisa ter poder, não por ambição, mas por viver numa sociedade extremamente capitalista, cujo modelo financeiro e selvagem estabelecem esses paradigmas. A gente não tem como fugir muito deles.

CB — Então é importante que os artistas e grupos aprendam "jogar dentro das regras do jogo"?

AR — Eles têm que saber qual é o jogo e não necessariamente que eles tenham que abaixar as calças. Eles têm, sim, que se inserir nisso e ajudar a educar esses contratantes. Pode se estabelecer, sim, um outro paradigma sem perder qualidade e mantendo a credibilidade e a visibilidade. Achar outras formas de buscar essa visibilidade que as instituições precisam, mantendo a qualidade artística. Às vezes até num custo menor. Você podendo ampliar programações e esse tipo de coisa.

CB — Mas, mesmo dentro dessa preocupação com a chamada "lei do retorno", havendo preocupação com a formação de público, será que a gente não consegue reverter esse quadro? Se for mudada a forma do público ver a qualidade, conseqüentemente isso pode esvaziar platéias.

AR — É. Mas não necessariamente o retorno está no público, mas no reconhecimento dos formadores de opinião, que é uma elite pensante. Se eles e os meios massivos de comunicação derem uma atenção a isso, para eles é o suficiente. Não que, em uma segunda instância, não haja preocupação em atender o público ou a comunidade. Mas essa não é a primeira instância, porque se fosse não se colocaria em dúvida a possibilidade de trazer o melhor espetáculo ou o que dá maior visibilidade. O público, portanto, é uma das instâncias. Na verdade, eu não tenho como afirmar qual é a primeira instância. Quanto à formação de público, isso retorna à questão do evento, que dificulta a formação de público. Programas que são extensivos promovem a formação de público. Só que estabelecê-los na difusão artística vai na contramão de qualquer uma dessas instituições, seja privada ou pública. Existe uma burocracia inerente a essas instituições que vai contra o dinamismo que é estabelecer roteiros permanentes de difusão, porque esses roteiros precisam de adaptação, de transformação, mudança, estudo permanente, de um ir-e-vir, de um feedback constante de público. Não basta simplesmente se estabelecer uma logística para a circulação de espetáculos, um preço de ingresso, um dia da semana e acabou: aquilo vai rodar sozinho, como qualquer máquina pública ou qualquer script de telemarketing. Não tem como, isso é um processo dinâmico. Vai se ter que jogar isso para o público, fazer uma avaliação disso, ver onde houve falhas e acertos, num segundo momento vai se ter sempre outras influências, de outras manifestações massivas. E a gente não está falando em cultura massiva, a gente está falando de coisas mais específicas. Então, é muito tênue essa relação que se estabelece com a comunidade, de uma cultura que não é de massa. Ela é sempre muito frágil, está sempre um pouco submetida às intempéries das outras manifestações – sejam as massivas, seja o jogo de futebol, uma copa de mundo ou um evento regional esportivo, não precisa nem ser cultural. Seja um feriado, sejam características específicas daquela região. Isso impossibilita a criação de modelos, o que vai na contramão de qualquer órgão público, que precisa criar modelos, porque ele tem funcionários que, nas suas 40 horas semanais, precisam saber exatamente o que eles vão fazer da primeira até a última hora. Então é um paradoxo, na verdade.

CB — A Itinerância da Rede SESC é um evento?

AR — É um evento, que estabelece uma logística que começa no primeiro dia e termina no último. No caso do SESC é um evento com um pouco mais de qualidade, que dá a possibilidade de o público ser a primeira instância, na opção de quem está estabelecendo o conceito dessa itinerância, não é? Dá para arriscar a dizer que sim, o público pode ser a primeira instância.

CB — De julgar o espetáculo com sua presença ou ausência?

AR — É, eu acho que sim. Primeiramente, se está estabelecendo parcerias com as municipalidades. Assim, se está colocando um pouco esses organismos desses municípios ligados à Cultura em movimento, em atividade – o que, para eles, é sempre muito difícil, porque a oferta de coisas legais é bem menor, até por questões financeiras mesmo. O SESC ajuda um pouco esses municípios a saírem dessa inércia da não promoção, não é?

CB — Você tem uma opinião sobre o que é que está faltando para que se estabeleça um processo de criação de formação de público para o teatro de rua? Você conhece o Movimento de Teatro de Rua de S. Paulo?

AR — Eu já conheço. Nunca me aproximei muito porque, da minha saída dos Parlapatões para cá, o meu foco mudou muito. O meu foco, que era extremamente coletivo, passou a ser individual e, de três anos e meio para cá, é como se eu tivesse recomeçado do zero. Isso tudo, apesar de eu ter trabalhado com a Central do Circo, o La Minima, La Plat du Jour, entre outros.

CB — Mas o teu histórico também se compõe com uma bagagem de rua, não é?

AR — Tanto que eu estou fazendo, no último ano e meio, um espetáculo-solo de rua, chamado "Pelada na Rua", com o que eu estou viajando um montão. E, voltando para o princípio de que "a grama do vizinho é mais verde", eu já mandei esse espetáculo para um monte de festival no Brasil e não vou para nenhum deles. Fiz um único festival aqui, que foi o de circo, ano passado, em Belo Horizonte. E, como au-concour, eu fiz um outro, em Dourados, competitivo, de monólogos. Fora esses, todos os outros festivais para os quais eu mandei, me recusaram. Por outro lado, das tantas vezes que já fiz esse espetáculo, ele foi apresentado mais vezes em espanhol do que em português, porque eu faço ele mais fora do Brasil do que aqui dentro. Eu não estou chorando pitanga; eu estou só fazendo uma constatação: fiz meu espetáculo mais fora do que dentro do meu país.

CB — E quanto à questão da formação de público para o teatro de rua? O MTR-SP tem essa possibilidade de se articular politicamente como é o caso, por exemplo, desse convite vindo da SMC de S. Paulo para elaborar em conjunto o primeiro edital de teatro de rua para a cidade ou até mesmo do interesse, por parte dela, em editar em livro o acervo do movimento. Como, na tua opinião, se pode fazer o público perceber que o artista de rua é um profissional que vive disso, que não está na rua por brincadeira, que não é uma questão de mera falta de espaço no palco italiano?

AR — Em primeiro lugar, a gente está numa cidade que tem uma série de deformações. S. Paulo é uma metrópole considerada a quarta maior cidade do planeta. Então, o que acontece aqui não é muito referência para o resto do país. São muito específicas as coisas que acontecem, aqui. E essa é a minha grande questão: a gente vive num país continental. As necessidades e especificidades de cada região são muito diferentes. Mais do que tudo, existe sempre uma tentativa de os artistas se concentrarem nos lugares onde existe uma maior circulação – o que acaba deixando orfãs uma série de regiões. A gente tem um monte de vazios demográficos e culturais também, nos quais seria imprescindível você ter manifestações artísticas, porque absolutamente não têm. Há quantidade de cidades que não tem teatros ou cinemas. Aí eu devolvo a pergunta: o que quer essa quantidade de artistas que estão aqui, se apertando, se acotovelando numa cidade como S. Paulo? Eles querem espaço para suas manifestações artísticas? A gente vive num país de dimensão continental! Por que essa necessidade de ser aqui em S. Paulo? Você tem ene-mil lugares extremamente carentes e ávidos...

CB — E quem paga isso?

AR — Eu não sei quem paga isso! Se a necessidade for acumular patrimônio, ganhar dinheiro e ser rico, então, sim, talvez eles tenham que estar em S. Paulo.

CB — Eu estou me referindo a eles poderem viver disso.

AR — É possível, sim, viver disso. Eu tenho certeza de que é possível estabelecer-se em regiões com essa carência cultural e, num primeiro momento talvez, você ter a necessidade de fazer um investimento. Mas, num segundo momento, se se tiver um trabalho de qualidade, sério, que passe pela formação e difusão, acaba-se tendo uma referência. A gente está num país a ser explorado. É um país novo, virgem. Ninguém tentou. Quem tentou, de fato? Onde tem manifestações, as coisas estão acontecendo. Talvez, a uns anos atrás, se olhássemos para Minas Gerais, disséssemos: puxa, ali não tem nada. O Galpão foi lá e investiu, deu a cara para bater e hoje é referência internacional. É coincidência a quantidade de outras manifestações nesse sentido, com a mesma região? Eu não acho.

CB — Mas, com o teatro de rua, a questão é que, muitas vezes, o público não sabe que isso existe. Não se percebe, nele, uma necessidade por teatro de rua.

AR — Mas "saber que existe teatro de rua", para mim, é um paradoxo, porque a coisa mais essencial do teatro de rua é que ele exista e não que o público tenha que saber da existência dele. Ele tem que passar a existir e fazer parte da vida das pessoas para que as pessoas identifiquem aquele signo, aquele código e saibam o que esperar daquela manifestação. Não que o público tenha que saber no sentido de "ah, onde eu vou ver um espetáculo de rua, hoje?".

CB — Esse o objetivo, hoje. Estabelecer-se um ponto, como já ocorre em Santiago do Chile, na Colômbia ou em Buenos Aires, que é um lugar em que o público sabe que ali tem teatro de rua.

AR — [risos] Uma revista com a programação semanal do Teatro de Rua, para mim, é um pouco ir na mesma direção dessa necessidade comercial que eu estou tentando negar, que eu acho que a gente precisa um pouco combater.

CB — Você começou a sua história na rua. Eu não sei se você sabe que, pelo menos até a administração passada, era comum que o artista fosse obrigado a pagar para se apresentar na rua. Algo em torno dos 70 reais. Hoje, com a Lei do Fomento, o Tablado de Arruar conquistou o direito de não pagar essa taxa.

AR — Eu acho nobre, "bonito" isso. [risos]

CB — Não é bonito, não é fácil fazer teatro de rua, não é uma coisa espontânea, como deveria ser. Então é nesse ponto que eu estou buscando a tua opinião. O que é que você pensa sobre uma articulação política entre os artistas e grupos de rua, para que se forme um corpo por meio do qual seja possível pressionar o poder público. Em decorrência do que você mesmo falou anteriormente, a iniciativa privada só poderá ser atraída mais tarde, quando o nosso público estiver formado. Nesse primeiro momento, os entraves estão acontecendo com o poder público.

AR — É, deve haver uma articulação no sentido de fazer o poder público entender que é um absurdo a gente ter que pagar para trabalhar. O poder público tinha que, ao contrário, criar espaços para que a gente possa trabalhar. E eu não estou pedindo cachê; eu estou pedindo condições. É uma inversão de valores absurda, acho que isso é quase inconstitucional. Eles me cobram para eu poder dar! [risos] Eu estou pagando para poder dar alguma coisa. Eu já pago imposto, cara! Que história é essa? Como assim? Eu vou pagar para poder exercer a minha profissão? Que é isso, que equívoco é esse? Quem pagou, que eu vou lá, dar porrada?

CB — [risos] Agora é o poder público que paga para o Tablado de Arruar estar na rua, inclusive ensaiando. É uma inversão, não é?

AR — Quem cobrava?

CB — A subprefeitura da Sé.

AR — Então, a gente tem que ver que não é a subprefeitura que está pagando o Fomento, pago por outra instância pública. Há um equívoco de quem deixou, de quem pagou isso. Tinha que ter explicado para a subprefeitura da Sé o equívoco que estava havendo ali. Eu não sei se ainda está assim, mas o Depav não permitia que houvesse nenhum tipo de espetáculo nos parques, como o Ibirapera ou o Parque do Morumbi. Houve, durante um tempo, a orientação de não permitir. Quando o Celso Frateschi assumiu a Secretaria Municipal de Cultura — o que, na verdade, nem acabou se articulando —, em conversa informal pensou-se na possibilidade de se estabelecer um credenciamento para os parques. Se você quisesse se apresentar nos parques, a Secretaria te avalizava, dizendo "esse é um artista de rua da cidade de S. Paulo, que tem todo o direito e autorização de apresentar seu espetáculo em qualquer espaço e logradouro público", desde que não infringisse nenhuma lei e não atrapalhasse o andamento e a boa ordem do local. E o cara estava autorizado a se apresentar onde quisesse. Na minha cabeça, deveria ser isso: estabelecer um procedimento para isso. Também para que não seja qualquer um, desses picaretas que a gente sabe que tem por aí, que sabe que pode chegar lá e se apresentar, então todo mundo faz o que quiser, onde quiser, na hora que quiser.

CB — O que mais os grupos de teatro ainda fazem, no que diz respeito à suas montagens, é "vamos fazer, depois a gente vê como faz para vender". Isso é um erro crasso – ainda mais dentro da estrutura capitalista de que você já falou. É morrer na praia. Pegando como exemplo o teu "Pelada na Rua", como é o teu processo da criação à produção? Quais são os passos que você dá até a viabilização do seu trabalho?

AR — Se você estiver voltado somente para a estrutura capitalista, com certeza é um erro crasso.
CB — Como assim? Você não vende o seu trabalho?

AR — Sim, eu vendo o meu trabalho. Esse é o meu primeiro espetáculo-solo, eu nunca fiz outro. Eu não tenho um modelo de produção.

CB — No entanto, você parece ser um cara bem articulado no que toca a se vender.

AR — Sim, porque eu tenho que fazer isso, também. A questão é: qual é a sua premissa básica? De onde você parte? Qual é a ordem de importância das coisas que te fazem se movimentar? Eu não tenho isso teorizado. Na prática, em maio do ano passado, eu estava com uma viagem para a Europa, onde eu ia passar dois meses trabalhando sob contrato, dentro do Fórum Cultural Mundial, em Barcelona. Eu estava indo para um lugar que eu acredito ser terreno fértil para se apresentar na rua, não é? Eu não quis sair do Brasil só para ser funcionário na Europa, se fosse só para isso, eu passo! Há 15 anos atrás talvez eu tivesse essa disposição, hoje em dia não mais. Então eu montei esse espetáculo para ter algo meu, para levar a minha identidade também. Depois eu descobri que a minha identidade foi incorporada dentro do trabalho que eu fui fazer, o que para mim foi muito gratificante. Mas eu queria levar algo genuíno, original, e eu consegui fazer isso. Fiz menos apresentações do que eu gostaria, do meu espetáculo, porque acabei tendo muita atividade, mas eu consegui me estabelecer de uma certa forma. Depois de ter feito esse espetáculo em italiano, francês e espanhol, voltei para o Brasil e logo depois fui para o México. Eu não sei te explicar como, mas esse espetáculo tem acontecido, ele tem sido vendido, também. Quer saber se eu parti de uma premissa capitalista, mercadológica, financeira? Não.

CB — Eu te pergunto se, ao produzir um espetáculo de teatro de rua, você já está pensando em como vendê-lo.

AR — Como esse é o meu primeiro espetáculo-solo de rua, Carlos, eu digo que 100% dos meus espetáculos de rua não partiram dessa premissa! [risos] A segunda experiência minha, nesse sentido, foram as duplas de Quixote e Sancho Pança que eu fiz, agora, na Itinerância do SESC. Isso foi estabelecido de uma maneira completamente diferente. O SESC me perguntou se eu faria para eles essa criação, eu aceitei e juntei dez atores e para cada um montei uma cena. Depois, cada dupla copiou cenas das outras duplas, para apresentarem em cidades diferentes, sem o risco de repetições. Ou seja, os dois trabalhos de rua que partiram de mim têm origens e objetivos diametralmente opostos, entende? A nossa obrigação, como artistas, é a de entender em que contexto está inserido o nosso trabalho. Entender ao que se presta o que se está fazendo. Parar com o discurso preestabelecido de que o meu trabalho é assim-assim-assado. Aliás, evitar discurso preestabelecido, porque a cada vez que a gente manda uma bomba, é comum vir um tsunami na direção contrária. Você diz: isso eu não faço! No momento seguinte, você está fazendo e, às vezes, nem se dá conta. Para isso eu não me vendo! E daqui a pouco você não só se vendeu, como cobrou barato. Vale mais a pena evitar discurso e entender aonde se está, de onde se está vindo e para onde se está indo. Não deixar de estabelecer objetivos mas ter a flexibilidade para escolher caminhos dentro da ética, mais do que tudo.

CB — Atualmente tem se percebido nas ruas manifestações teatrais com propostas com formas que não se comunicam bem com o popular, com o cidadão que não tem tempo, está muito envolvido com os problemas do tic-tac cotidiano, e que de repente se vê atraído por uma coisa que rasga o seu cotidiano, que interfere na sua rotina. E nesse sentido que eu acho que o teatro de rua funciona.

AR — Mais do que isso, o que dá o diferencial e a possibilidade dessa interferência que você diz não é o que, mas o como se faz. Eu pude confirmar isso com o trabalho que a gente está fazendo com a Itinerância do SESC, onde a gente está trabalhando com uma obra que tem 400 anos. A grande parte das pessoas, na verdade, nunca leram "Dom Quixote e Sancho Pança". Livro, no nosso país, é peso de porta ou de papel. O que eu fiz foi identificar os arquétipos do palhaço que existem no Quixote e em Sancho Pança. Então, chegar com uma intervenção, falando assim, parece um pouco impositivo. Só que a gente conseguiu estabelecer uma maneira de se comunicar, usando as palavras do Cervantes, que têm uma força surpreendente. Aí, sim, eu tenho a presunção de me dar o mérito de conseguir lançar mão da minha bagagem de 15 anos, do melhor dessa comunicação para falar os textos do Cervantes. E eu estou muito gratificado com o resultado e surpreso pelo fato de o texto não ser a coisa mais digerível do planeta. Que força tem a poesia do cara na rua! É impressionante.

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