Nùcleo de Teatro de Rua ELT

Thursday, May 18, 2006

Teatro de Rua na Escola Livre de Teatro



Por Antônio Rogério Toscano (em 2005)

A criação do Núcleo de Teatro de Rua na ELT, em 2002, respondeu a necessidades antigas, que acompanhavam a Escola desde a sua formação: abrir franco diálogo com a cidade, ampliar a área de atuação dos processos artísticos e, com isso, irradiar idéias geradas pelo contexto pedagógico, para que o trânsito de materiais teatrais provocadores reverberasse e constituísse novos fluxos de inquietação e criatividade: ecos que interfeririam em novas fronteiras, influenciando no surgimento de outras camadas de ondas de liberdade, muito mais democráticas, por toda a cidade.


Mas um projeto como este, à época um tiro no escuro (como sempre, a ELT é um laboratório de experiências imprevisíveis), não tinha uma cara pré-estabelecida. Nunca tínhamos experimentado deste sabor, senão em algumas apresentações trazidas à cidade, em espetáculos que detinham a sua própria natureza poética. E, mais uma vez, como sempre foi a prática da ELT, não havia interesse em reproduzir modelos. Pelo contrário, os moldes da tradição, importantíssimos para nós, seriam tomados como referenciais, apenas.


Enfim, o que seria feito? Teatro de rua. O que é? Quais são as especificidades desta linguagem? Trata-se mesmo de uma linguagem? Seus códigos são definidos? Quais são eles? Quem os definiu e em que situação? Quais são os possíveis teatros de rua? Há outras definições teóricas, dissidentes, igualmente válidas para sabermos o que pode ser, conceitualmente, esta manifestação cênica? Contradições a serem exploradas? Qual a diferença disso tudo que se vê como "teatro de rua" para outras possibilidades poéticas, como a de um "teatro na rua"? Ou de um "teatro com a rua"? Talvez um "teatro para a rua"...


Tantas questões foram os pontos de partida para as investigações, que apontariam para rumos bastante inusitados, aliás. Alguns relatos a este respeito foram publicados nos Cadernos da ELT de 2004, quando os primeiros filhotes deste núcleo começaram a nascer. Cenas, exercícios de dramaturgia, debates foram moldando o tom do diálogo.


Implicações de cunho ideológico começaram a se desenhar com mais clareza. Preocupações sociais ficaram mais explícitas. Temas passaram a reger as planilhas de criação. O menino-falcão, pequeno traficante que tem os dias contados, "prazo de validade", e que permite estabelecimento de foco nos paradoxos da vida contemporânea na favela, foi escolhido.


Cada um dos braços deste Núcleo (criado como hidra, ou como rede interligada, em que transbordamentos da dramaturgia pudessem brincar, em processo colaborativo com a cena - fiel da balança na experimentação de recursos técnicos vindos da prática do circo, e assim por diante) passou a lidar com as possibilidades deste mote.


No eixo da dramaturgia, o tema angariava recursos para culminar em cenas: a miséria, associada ao abuso do poder de policiais e de poderes paralelos, numa sociedade fetichista e movida pelo espetáculo como a atual, impulsionava que se compreendesse a vida como mercadoria, em explícito processo de coisificação do humano.


Nos trabalhos com circo, formas corporais inusitadas eram estudadas para ampliar o repertório do ator diante da fábula e do debate proposto. A cena: lagoa em que desaguavam os diversos rios de experimentos e reservatório de que escorriam novas correntezas criativas.


O local de trabalho: a praça Rui Barbosa, onde fica o Teatro Conchita de Moraes - nossa casa. Este laboratório, que faz a ligação do nosso espaço com a cidade, já era utilizado para ensaios, mas nunca com este radicalismo. De fato, a extensão direta da ELT é uma praça, em que foram planejados ensaios sob o sol quente da tarde.


Uma proposta de cena em que Deus e Diabo disputam a cabeça do menino-falcão foi experimentada naqueles gramados. A cabeça do menino era a bola de futebol da disputa entre arcanjos e demônios, narrada com a comicidade de quem aposta no jogo como única saída para uma teatralidade verdadeiramente potente.


Atritos criativos, muito bem-vindos (já que Kil Abreu, então coordenador do projeto ELT, construíra o núcleo inspirado num tripé bastante peculiar, formado pelos artistas Luis Alberto de Abreu, Marcelo Milan e Claudia Schapira), fincaram-se como combustível para o processo, que chegaria à estréia com A saga do menino-falcão, texto publicado pelos Cadernos da ELT de 2005.


De Luis Alberto de Abreu, o Núcleo recebeu a vasta experiência com a comédia popular e com premissas dramatúrgicas experimentais. Sua preocupação era justamente a de estabelecer critérios para a formatação (junto a aprendizes de dramaturgia para a rua) de textos teatrais próprios para esta dinâmica.


A passagem apressada de transeuntes pelas cenas indicava os caminhos de uma cena épica, recortada, em que cada pequeno trecho pudesse adquirir autonomia em relação ao espetáculo como um todo. Pois nem sempre o espectador esperaria para participar do jogo inteiro, do início ao fim de uma trajetória cênica. A rua é soberana e a pressa é uma de suas forças regentes, nestes terríveis tempos em que nos coube viver.


Usos de imagens e alegorias, de idéias claras e objetivas, de recursos cômicos, de firulas não-dramáticas que contaminam a cena com o frescor da surpresa e de efeitos espetaculares que desdobram sentidos incomuns (válidos por eles mesmos, sem a dependência de uma ligação causal com a próxima etapa do roteiro) foram alguns dos trampolins desta procura.


Da natureza circense do trabalho de Marcelo Milan viriam a acrobacia, os números independentes, o malabarismo, os vôos, as situações de risco, as imagens corporais coletivas e, fundamentalmente, o treinamento que traria o vigor necessário para a comunicação direta, básica em uma circunstância de rua.


Até aqui, as tendências combinavam-se de modo orgânico. A tradição popular em que se basearam as comédias comumente vistas nas ruas, desde fins da época medieval, em feiras e carrocerias itinerantes, dialogava direta e convergentemente com todos estes fatores em experimentação.


O exímio executor de truques cênicos da commedia dell´arte tornava-se, mais uma vez, interlocutor poderoso que norteava os caminhos da criação, na ELT. Anteriormente, a presença de Tiche Vianna, dos Parlapatões, Patifes & Paspalhões, de Ednaldo Freire e do próprio Luis Alberto de Abreu, dentre outros, na primeira fase da Escola, já apontava para o uso destes recursos como paradigmas de formação de intérpretes, especialmente com o uso da máscara e com os trabalhos com a comédia popular.


Mas havia outro pilar a sustentar o plano de ação: Claudia Schapira trazia à ELT sua pegada de rua muito mais próxima da intervenção urbana, desenvolvida junto ao Núcleo Bartolomeu de Depoimentos com referenciais urbanos da cultura hip-hop, em que o ator-MC, disposto a deixar sua mensagem através do rap (ritmo e poesia), pode contar com imagens do grafite, com street dance de b-boys e com desejo explícito de transformação social - a cultura de rua ganhou tons efetivos na periferia, como busca de um mundo menos desigual.


Neste canal da intervenção, alguns aspectos da teatralidade são substituídos: a representação cômica passa a conviver com a instância performática, em que uma espécie de "presentificação" altera completamente o trato com o espaço e com o tempo. Ao invés de cenários, a paisagem urbana constituída. Novas delimitações para a margem que separa o teatro da vida: as zonas autônomas temporárias, de Hakim Bey, e o desejo de instaurar a festa e dar suporte ao discurso/depoimento do ator, ato pós-político favorável à transformação da ordem vigente: enfim, a urgência das ruas, na chamada de Ned Ludd.


Ativismo poético (ou, nas palavras de Bey, terrorismo poético) que planeja mais desorganizar do que organizar: a ética antecedendo todas as escolhas estéticas. Tomar de assalto um espaço público e criar com ele uma relação inédita, que invista na resposta de um espectador que ganha de volta a sua função (não mais contemplativa) crítica e atuante, brechtiana: aí estava a resposta! Ou, pelo menos, uma delas.


Bertolt Brecht era o elo que unia formas díspares de lidar com o teatro (que não era mais de rua, ou para a rua, ou com a rua) e permitia que um tratamento crítico das questões se impusesse como flagrante de relações entre personagens próprios da cidade: o florescimento do imaginário de uma cultura popular urbana derivaria, sim, do confronto da festa da rua atual (como ela é) com as formas da tradição (como sempre foi).


E, desta busca, o surgimento de um novo Núcleo: o de Teatro Popular Urbano. A saga do menino-falcão, que teve coordenação de dramaturgia feita por Abreu e Schapira, resultou desta multiplicidade de fatores. Cada cena independente (aqui intitulada "procedimento") forjava um aspecto da vida curta do menino Gabriel.


A peça, iniciada com o cortejo fúnebre do menino-falcão, estabeleceu um hibridismo formal em que coros e falas à platéia sobrepunham-se a situações dramáticas efetivas. Alegorias como a do Sargento Mata (para que sutileza, afinal?) brincavam com a fala poética do coro de favelados: "Moro no morro/e por ele eu morro". Críticas à mídia deformavam as personagens, que ganhavam cabeças de televisão. Técnicas depuradas do circo traziam, em uma tirolesa de alpinistas circenses, o traficante colombiano.


Cenas curtas, informações precisas. Narrativa cênica direta, traçada em saltos, com utilização de um espaço múltiplo, móvel, que se modificava de acordo com cada situação cênica. O rap presente na fala melódica de atores que traçavam pequenos depoimentos poéticos, com percussão. A comédia popular como evidente matriz, na empatia do trabalhador ou no jogo cômico dos loucos que chegavam para confundir as certezas sobre o presente.


A próxima etapa: o desdobramento do Núcleo. A chegada de Roberta Estrela D´Alva, ainda durante o processo de montagem de A saga do menino-falcão, trouxe novos contornos para a presença da cultura hip-hop nos trabalhos. Isso definiu parte das resultantes cênicas e deu ao processo um caráter de intervenção urbana associada ao impacto da cena de rua.


Em nova chave, o Núcleo mostrava então a sua faceta mais constante: a capacidade de transformar-se, de mudar completamente seus referenciais para responder às necessidades dos novos aprendizes - e dos novos tempos. Foi por esta fase que a dimensão conceitual do trabalho ganhou o centro do debate e levou consigo esta condição transitiva para o processo. Eram tempos de estudos teóricos, de pesquisa e leitura.


Por isso, no momento seguinte, quando este Núcleo se abriu em três partes (quando o Núcleo de Montagem Circense criou espaço para uma pesquisa sólida, própria, sobre a tradição circense em E.L. Circo, em longa temporada na lona armada no Parque Prefeito Celso Daniel; e a dramaturgia voltou-se para a assombrosa construção de Narrativas de Passagem) seus novos formatos eram legítimos.


A pesquisa para Pequena falha no sistema de segurança (estreado em 2005; apresentado em Centros Comunitários da periferia, CESAs) surgiu orgânica, com a chegada de Ana Roxo, que é quem atualmente carrega este bastão como pesquisadora das relações entre forma e conteúdo de uma cena de rua.


Como na véspera da estréia de Pequena falha no sistema de segurança o espaço da ELT foi brutalmente invadido, assaltado e teve suas cortinas de veludo rasgadas; como o aviltamento das condições de trabalho respondia diretamente ao tema do espetáculo (uma família neurótica por segurança vive cercada por extrema vigilância; o resultado é que a própria filha mais nova, reprimida pelo excesso de medos, desembesta a destruir o sonho inútil de inviolabilidade), a escolha pelo novo tema de pesquisa é absolutamente compreensível: o Amor.


É neste ponto em que estamos, na passagem de 2005 para 2006. Como um território de pesquisa, este Núcleo não pode prever seu momento futuro com precisão. Sua transitividade é seu aspecto conceitual mais importante - e que, aliás, mais se aproxima do projeto ELT.


São a mudança e o rigor os fatores que impedem que os cacoetes (quando meramente reproduzidos como fórmulas prontas) do tradicional teatro de rua se reafirmem, em forma de macetes e de certezas mortas. É a busca de uma cara própria, de especificidades, que se torna escudo protetor contra o olhar envelhecido.


Em um mundo em que a cidade é hiper-espetacular, o teatro popular urbano enfrenta novos desafios: a presença apenas acidental, afirmada por cores festivas e truques cômicos, talvez não responda mais à complexa equação do presente. Em um espaço público cada vez mais privatizado, a democracia da rua se impõe como necessidade – como urgência poética. Em um tempo em que o espetáculo de aviões lançados contra torres de concreto armado é transmitido ao vivo para o mundo (ou quando curdos queimam seus corpos em praças públicas como forma de protesto), a tarefa da intervenção poética torna-se mais perigosa (justamente por ter que competir com estes novos códigos ativistas e/ou terroristas do que agora é espetacular) e importante.


Entretanto, para assumir o risco de trafegar pelo desconhecido é preciso que se tenha fôlego. Isso ainda se coloca como um desafio: nossos espetáculos precisam ganhar de fato a cidade. Para escaparmos do discurso vago e formularmos uma ação de irradiação, temos que nos dar conta da natureza ética da nossa busca poética. Ou continuaremos a pregar em praças vazias nossa doutrina vã, para não dizer ingênua (ou mentirosa).


A lição que a breve trajetória do teatro de rua na ELT nos deixa é a de que as formas de teatro de (na/para a/com a) rua são muitas e que, antes de mais nada, devem responder às necessidades artísticas de quem as cria, à formulação conceitual que opera em seus paradoxos internos, à provocação formal que responde aos desejos do discurso poético.

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