Nùcleo de Teatro de Rua ELT

Wednesday, April 26, 2006

Entrevista com Francesco Zigrino

No metrô há muita gente lendo livros. É uma platéia em potencial, curiosa, à procura de expressões culturais vitais para elas. Isso está na cara dos paulistanos

Carlos Biaggioli


O Portal da CPT foi conversar com Francesco Zigrino, ator e diretor italiano de teatro, que ano passado (15 anos depois de um trabalho desenvolvido na EAD Escola de Arte Dramática) voltou ao Brasil a convite da diretora Cida Almeida, que mantém na região do Jabaquara o CLÃ Estúdio das Artes Cômicas. O objetivo foi o de coordenar dois trabalhos junto ao G.E.C.A. — o Grupo de Estudos de Clowns Anômicos do Clã.


Portal da CPT — Como surgiu o seu interesse pelo teatro e as manifestações teatrais de rua?


Zigrino — Eu me formei em Bolonha, nos anos 70, quando Bologna trouxe para a Itália uma escola que formava, em nível teórico, pessoas que tinham interesse em arte, em música, em espetáculo. Eram professores famosos, brilhantes. Foi uma grande escola naquele momento, quando não se conhecia teatro antropológico, Grotowski, Kantorz, Peter Brook.
Fomos os primeiros a mexer com essas matérias. Depois me formei, do ponto-de-vista técnico, na escola de Lecoq e desenvolvi trabalho de clown, de commedia dell’arte e máscara neutra, são essas as coisas que me interessaram.
Já formado, tive uma companhia em Taranto, minha cidade, importante porto militar, siderúrgico, um lugar ligado ao trabalho operário. O sul da Itália ainda hoje sofre de atrasos impensáveis, na Europa do mercado, dos grandes capitais, do euro. O Sul sempre forneceu mão-de-obra para as Américas, a Austrália e para a Europa mais rica, como Alemanha, Suíça, França e Inglaterra.
Então, ou se imigrava ou se vivia (e ainda se vive) de pobreza, também cultural. Encaramos essa companhia em Taranto e os trabalhos eram sempre muito ligados a questões mais políticas — mesmo não encarando uma dramaturgia especificamente política.
Por exemplo, se raciocinava sobre "Sonho de Uma Noite de Verão", do Sheakespeare, como tendo uma tradição antiga representada pelo Puck, e que tem equivalência nas várias mitologias populares. Ele é sem dúvida um Saci Pererê! No sul da Itália têm, obviamente, duendinhos muito parecidos.
Se raciocinava sobre os artesãos, identificando-os como os operários. Se raciocinava sobre a loucura e se trabalhava com doentes mentais. Não era um trabalho diretamente maiakovskiano ou meyerholdiano, mas era um trabalho que tentava ligar o espetáculo à criatividade, à comunicação teatral, a temas que poderiam interessar e divertir a quem o fizesse, porque a companhia era aberta a pessoas que queriam se expressar desse jeito, tendo três profissionais à disposição: um organizador, um diretor e um ator- treinador.
Foi nesse sentido que sentimos a necessidade de procurar técnicas que a gente não tinha e, por sorte, achamos o melhor que a gente poderia ter, naquele momento e nos anos seguintes: a escola de Lecoq, que, como até hoje, formava clown, commedia dell’arte e linguagens que nos ajudaram a trabalhar nesses lugares.
Em seguida houve um encontro aqui com o Brasil, bastante casual, feito por meio de amizades, sem o intuito da procura, e aquilo dividiu um pouco a companhia. Eu decidi ficar aqui porque gostei. Muito simples. Fiz cursos da EAD, na ECA, na FAAP, em vários lugares e fiz também umas montagens, que na época não foram muito importantes, a não ser um "Pinóquio", que foi muito bem-sucedido.
Mas descubro agora, ao voltar depois de 15 anos, que existem clowns de muitos níveis, seja artístico, seja expressivo e seja de concepção política. Para estes, a expressão de trabalho de rua é com certeza uma das trilhas que lentamente se espalharam.
O teatro de rua sempre existiu e sempre vai existir, variando a depender de território e de artista. Obviamente são artistas soltos, que dificilmente se encontram, dificilmente pensam juntos. A história do "novo teatro de rua" da Europa não tem uma história muito mais comprida do que a que existe hoje em dia no Brasil e particularmente em S. Paulo.
Como qualquer coisa ligada a cultura, é claro que na Europa há uma possibilidade maior de expressão, porque tem mais dinheiro, maior organização e produção, tem interesse, tem festivais, encontros promovidos em várias nações e cidades. Isso facilita um conhecimento maior para um público que se encontra especificamente nessas manifestações e é um teatro de rua ligado algumas vezes à tradição, que pode ser à tradição de vender, uma das bases do teatro de rua, não é?
Tem um trabalho ligado a formas expressivas circenses, de bonecos, marionetes, a pesquisas às vezes muito modernas, surpreendentes. São cidades pequenas, então manifestações desse tipo não têm dificuldades para acontecer. Mas ali também é difícil viver de chapéu, dirferentemente, por exemplo, de Paris, com o Centro Cultural Pompidou, a praça lotada por clowns, commediantes dell’arte, malabaristas, bonecos, etc.
Aqui o que eu vi me surpreendeu e a primeira coisa que pensei foi o quanto falta de comunicação entre os artistas no sentido de uma elaboração política interna, seja para poder ter mais recursos e espaço, mas principalmente para se perguntar o que realmente se pode fazer, alcançar, tendo como objetivo um público-alvo, um público popular, muitas vezes um público sofrido.
Não percebi um concurso de idéias que buscassem uma teorização cultural e política — mas isso me parece que pertence ao Teatro paulista, em geral, não pertence só a esse setor. E se percebe também uma falta de vontade por parte de estudiosos, críticos e políticos da cultura de mexer nisso. É muito mais simples manter o teatro já existente, com os grandes dramaturgos, com a grande história do teatro brasileiro ou paulista, e nada mais que isso.
Tem que ser suscitada, principalmente nos intelectuais, uma colocação mais séria, um estudo e propostas que obviamente não podem surgir de clowns, malabaristas ou outros artistas que estão ganhando a vida com o chapéu no dia-a-dia, mas que tem um público potencialmente mais rico. Estes estão à espera de dramaturgias, de idéias, de políticas — e não só de recursos, que obviamente são a primeira coisa que passa na cabeça de qualquer artista.
Nessa temporada, aqui no Brasil, eu percebo que o que não existia, há quinze anos atrás, é hoje uma realidade bem importante. Isso é uma felicidade, porque estamos em S. Paulo, que é uma cidade do mundo, onde tudo se elabora muito velozmente, onde as coisas caem, são esquecidas. No metrô há uma quantidade impressionante de pessoas (de todos os níveis sociais) lendo livros. Talvez em Paris ou na Alemanha você ache isso, mas não é uma coisa normal no mundo. É uma platéia em potencial, interessada, curiosa, à procura do saber, de expressões culturais vitais para elas. Isso é uma responsabilidade de quem mexe com Cultura, porque é uma riqueza enorme e muito pouco satisfeita. Devem ser encontradas linhas políticas e intelectuais para evitar esse desperdício.


Portal — A Lei de Fomento ao Teatro utiliza verba público em pról da pesquisa teatral. Muitos grupos já foram contemplados. Como o senhor vê as leis de incentivo que vinculam verba pública a critérios mercadológicos?


Zigrino — Na Itália não existe uma lei para ao teatro, a não ser uma pequena lei, de 1990 — que está na mão do governo —, renovada anualmente, que não mexe com os critérios de escolha ideológicos, mas com as grandes categorias, como cinema, circo, teatro experimental, teatro para infância e juventude. São Paulo não está atrás nessas coisas.
Eu sinto que existe, no Brasil, um complexo de inferioridade absolutamente injustificável no que diz respeito a isso. Não se pode fazer paralelos. Hoje, no mundo globalizado, o Brasil não tem nada o que invejar a Europa em geral. Na lei italiana, por exemplo, o teatro de rua entra muito pouco. Há 20 anos que temos encontrado dificuldades em fazer entrar financiamentos para o teatro infanto-juvenil, que hoje é talvez o espaço de maior pesquisa, expressividade, novidades e de propostas culturais.
Antes disso, houve também dificuldades em ter um incentivo articulado para teatro de experimentação e de pesquisa. O que acontece lá — e é normal que aconteça, porque a história é diferente — é que as categorias teatrais (rua, bonecos, etc.) entenderam historicamente que devem se unir sob princípios de escolhas políticas para obterem seus financiamentos particulares. Mesmo porque, hoje, lá não existem essas leis de incentivo ligadas a impostos que aqui tem. As empresas particulares estão, há alguns anos, pensando nesse sentido. Nisso, vocês estão adiantados.
Mas a coisa boa que lá tem (e que precisa ser trabalhada por aqui) é um nível sindical que busque respostas mais atentas à esta captação de recursos e financiamentos. Os latinos, em geral, têm uma dificuldade em raciocinar cooperativamente. Essas categorias são fracas e, se houver determinação no sentido de dizer "esse é um trabalho para todos", as dificuldades e divergências têm que ser resolvidas internamente e as decisões devem ser lei para todos, um fronte único.
Esse nível não se consegue, com certeza, com uma mentalidade militar. É claro que sempre vai ter dificuldades e o ganho está no fato de o público poder ter acesso ao nosso trabalho. É essencial, portanto, que sejam organizados espaços nos bairros, manifestações do voluntariado próximas às paróquias, etc. Não é uma questão de dizer "eu mexo com oito bolinhas e mereço 10 reais a mais do que você". Isso não leva a lugar nenhum. Internamente deve se buscar um nível único, eficaz na busca de perguntas e na obtenção de respostas.


Portal — Há quase 4 anos, existe em São Paulo o Movimento de Teatro de Rua. O mesmo acontece também na Bahia e em Pernambuco, como em Brasília, Belo Horizonte e no Sul do país. A busca é de um pensamento único, dos grupos e artistas estarem se conhecendo, alinhando expectativas e levando à população uma ação unificada.


Zigrino — É isso. A consciência dos intelectuais no mundo inteiro (professores universitários, pesquisadores, críticos teatrais, dramaturgos) deve ser despertada para o fato de que já estiveram muito, muito, muito na vanguarda em outros tempos, no pós-guerra, nos últimos 40 ou 50 anos. Os intelectuais foram importantes, mas desapareceram.


Portal— A ditadura militar teve muito a ver com isso.


Zigrino— Na Europa é a mesma coisa. Essa é uma explicação local que se pode juntar com outras explicações. Hoje o intelectual é um cara que vai na televisão dar entrevistas sobre problemas espirituais ou psicológicos. Não quero dizer que isso não seja importante mas há temas que, no mínimo, são tão importantes quanto e não existem publicações, produções, adubo para eles.
Falta adubo para a Cultura. O artista é uma planta que nasce do adubo da tradição e de idéias que não podem ser só dele. Não há cabimento em um artista de rua não se comprometer em saber o que é historicamente a commedia dell’arte nos 500 ou nos 600, na França ou na Espanha. Uma forma de lhe trazer isso à consciência e alimentar com recursos sua alma e sua mente está em o intelectual buscar sistemas para que essas idéias possam ser passadas e usufruídas, consumidas, digeridas e cagadas pelos artistas.


Portal — Parece existir uma espécie de baixa-estima no artista de rua, ao crer que "não deu certo no palco italiano e só lhe resta a rua". Ou, pior: o público (até por falta de informação) o vê assim. Na sua opinião, qual é a importância histórica do Teatro de Rua para o teatro e para a formação do cidadão?


Zigrino — Em São Paulo é evidente que a maioria das expressões de teatro infanto-juvenil são entendidas por dramaturgos, diretores e atores como um "trampolim" — ao invés de uma especialidade. Para o teatro de rua é a mesma coisa. O teatro infanto-juvenil paulistano não merece nem 1 real, porque 95% dos espetáculos não são nem amadores, eu não vejo nem gente se divertindo, ali. Muitos amadores, principalmente no Brasil, no mínimo conseguem se divertir — seja com o novo ou com a tradição, com a pesquisa ou com o popular.
É óbvio que, em movimentos novos, a neblina é um fator. O teatro de rua sempre existiu em qualquer cultura, da mais primitiva à mais popular. Quando se diz "popular", se diz no sentido de "de todos". Se o Teatro de Rua é feito no centro, ao lado de uma feira, lá não está somente a empregada assistindo-o. Há um compromisso de roubar um sorriso ou uma alegria, mas também o de compartilhar um pequeno pensamento, uma pequena reflexão.
Há movimentos no mundo que mexem com coisas mais radicais. Augusto Boal é também Teatro de Rua e é uma coisa do Brasil no mundo, que existe há 10 mil quilômetros daqui, numa cidadezinha italiana de 4 mil habitantes que tem um núcleo de Teatro do Oprimido. Há especificidades de radicalismos, de políticas de verdade em Teatro de Rua. Os charlatães, os saltimbancos ou a expressão circense feita nas ruas é coisa que você encontra nos vasos da Antiga Grécia ou nos grafites do Antigo Egito. Sempre existiram.
Não é verdade que sejam coisa de só 10 ou 15 anos, aqui em S. Paulo. Muitos que vendem remédios ou goiabada, tanto no Anhangabaú ou num bairro longínquo, mexem com uma expressão comunicativa que é muito próxima desse teatro, que é a de produzir interesse sobre uma pomada ou um objeto. Aquele é um espetáculo de verdade, que tem um objetivo certo.


Portal — Cida Almeida considera o senhor como sua grande referência na pesquisa das máscaras da comédia. O que o motivou a trabalhar com o G.E.C.A.?


Zigrino — A Cida é uma das minhas alunas da turna de 1983, com quem eu tive uma maior aproximação. Naqueles anos, eu desenvolvia essas técnicas e, com mediação do Instituto Italiano de Cultura, eu cheguei à EAD, que reunia gente do Brasil inteiro. A Cida é de Salvador. Eu estava aqui com as técnicas do Clown e da Commedia dell’arte, que interessaram àquele momento, que procurava uma evolução no ensino acadêmico à partir de formas expressivas que proporcionassem comunicações teatrais direrentes das oficialmente acadêmicas.
Agora, quinze anos depois, me orgulha ver o trabalho da Cida, tnata generosidade colocada nesse lugar [o Galpão do Clã] é comovente. Mas também dá uma angústia. Eu percebo que existe o interesse de muitos em povoar esse lugar. Por isso passei quase 70 dias praticamente dormindo aqui, mexendo com essas pessoas. Dá raiva ver esforço e tanta generosidade quase jogados ao vento.
É uma outra geração, diferente da de 83, com outras características e outras forças. Hoje os governos não estão nem aí se a população está ou não está politizada; não interessa mais. Daí pra frente a dificuldade é enorme e o que se nota são pessoas que não sabem nem organizar um estudo para si. Percebo como a minha geração deixou de lado essa outra geração. Como não encaramos a responsabilidade sobre a geração subseqüente. Não chega a ser uma desonestidade da minha geração, mas um grande descuido.
Vamos ver! Não é fácil. As pessoas têm grandes dificuldades. Não é culpa deles, que esses amigos nunca tenham assistido "La Strada", do Fellini. Essa não é uma cidade fácil e a estrutura desse Clã não pode ser encarada por uma única pessoa. E outros espaços provavelmente estão nas mesmas condições. A generosidade, de um jeito ou de outro, tem que ser elaborada e acertada num plano mais organizacional

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