Nùcleo de Teatro de Rua ELT

Wednesday, April 26, 2006

TEATRO DE RUA, QUESTÕES IMPERTINENTES



Por Luis Alberto de Abreu
Extraído do "Cadernos da ELT" nº 1 , Jun/04

A instalação de um Núcleo de investigação em torno do teatro de rua era uma idéia discutida e um desejo acalentado há algum tempo dentro da Escola Livre. As razões que justificaram sua implantação são várias. Uma delas é o significativo impulso que as manifestações teatrais na rua, nas praças, galpões, fábricas, casas e outros espaços não convencionais, ganharam nos últimos vinte anos, multiplicando grupos e motivando experiências estéticas diversas. Ficou evidente que os edifícios teatrais, reduzidos em número, não davam mais conta nem da demanda de espaços, nem das propostas estéticas para as quais era imprescindível o estabelecimento de uma nova relação com o público e com o próprio material artístico. Nos últimos trinta anos, o antigo e eficiente palco italiano e sua tradicional e sólida relação palco-platéia pareceu não mais dar conta de uma série de novas propostas.


Outra razão que justificou a criação do núcleo de pesquisa foi o esforço de alargar o horizonte de atuação da Escola Livre, torná-la visível no bairro onde ela se encontra, agregar novos contingentes de público e criar espetáculos que, com uma necessidade mínima de logística e aparato cênico, pudessem ganhar outros bairros, praças e intervir culturalmente nos espaços abertos da cidade. Paradoxalmente, são esses espaços com a maior afluência de cidadãos, são essas "ágoras" que recebem menos investimentos culturais. Numa sociedade que cultua e privilegia os espaços privados, ruas e praças são, em geral, solenemente desprezadas – exceção feita aos shows de entretenimento em datas cívicas e vésperas de eleições.


No entanto, ruas e praças públicas são ainda espaços privilegiados do exercício da cidadania, são ainda os territórios de encontro de uma cidade. E apesar da tendência ao insulamento que se verifica nos grandes centros urbanos, qualquer mudança social e cultural de alguma importância passa pelas ruas e praças.


Outra razão de peso foi simplismente a premência do tempo. A proximidade de eleições municipais sempre faz balançar perigosamente sobre uma escola pública de artes a espada de Dâmocles, que atende pelo nome de "continuidade". Infelizmente a cultura move-se ao sabor dos ventos instáveis da política e não é raro perceber todo um esforço de desenvolvimento cultural transformado em terra arrasada por um novo inquilino no poder. Por isso não queríamos correr o risco de deixar a pesquisa de uma área importante da manifestação teatral para um futuro incerto.


Existiram muitas outras razões para a implantação do núcleo de pesquisa de teatro de rua, mas essas dormiam em nossa intuição e só foram despertadas a partir do trato com o próprio material de pesquisa.


O Núcleo de Teatro de Rua surgiu integrando o Núcleo de Técnicas Circenses, coordenado por Marcelo Milan; o núcleo de Dramaturgia, sob a supervisão de Luis Alberto de Abreu, e um núcleo de atores dirigido por Roberta Estrela D’Alva e Claudia Schapira. Após um ano de estudos, ensaios, levantamento de material, incursões cênicas em ruas e praças e, na iminência de levar à cena da rua o primeiro espetáculo dessa pesquisa, ainda é reconhecidamente cedo para qualquer teorização a respeito do assunto. No entanto, algumas reflexões e algumas questões teimam, de forma impertinente, em requerer desenvolvimento e respostas.


A maioria dos envolvidos no projeto tinha, de uma forma ou de outra, alguma experiência em espetáculos de rua ou em espaços não convencionais, e mesmo assim a empreitada nos pareceu bastante complexa. Um núcleo de pesquisa, como entendemos, não se propõe, apenas, alcançar um resultado formal. Implica em buscar entender a base sobre a qual se apóia determinada forma, refletir sobre os elementos que a constituem e relatar e discutir essa experiência com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre o tema em pesquisa. É isso o que, aqui, começamos a fazer.


A base de apoio de um espetáculo teatral na rua revelou-se instável, complexa e extremamente ampla.
A experiência viva do espetáculo teatral num ambiente fechado, seja palco italiano, arena ou mesmo um simples galpão, tem sempre alguma espécie de controle no desenvolvimento do rito teatral entre palco e a platéia. Podemos estabelecer um foco de atenção, amenizar interferências externas, propiciar conforto minimo necessário para não prejudicar a participação do público. Além disso, tem-se um aliado fundamental: o público se desloca até o espetáculo por livre e espontânea vontade, o que é, por si, fator de estabilização da relação palco/platéia. A rua, ao contrário, é um terreno completamente movediço. É um espaço de passagem, sujeito à constantes e imprevisíveis alterações, sem foco concentrador, e cuja platéia não fez opção prévia em participar do espetáculo. A questão básica que nos colocamos foi: como gerar interesse e, mais importante, como manter o interesse durante o transcorrer do espetáculo? A questão talvez seria mais facilmente respondida se considerássemos o teatro apenas uma forma de entretenimento, como uma mídia da "sociedade do espetáculo" quer fazer crer. No entanto, permanecemos fiéis à antiga idéia de que o teatro, necessariamente, deve possuir um LOGOS, um sentido, um conteúdo pedagógico que se integre à intensa experiência emocional, cômica ou dramática, que carrega. O teatro desde o seu nascedouro, no ocidente e no oriente, já se estruturava como experiência sensível e busca do sentido da existência. Sem essa dialética viva entre razão e sensibilidade cremos que o teatro perde sua força fundamental.


Como, então, estabelecer e manter essa força fundamental num espaço de passagem, sujeito à dispersão, sem foco concentrador e com um público que não fez escolha prévia em participar da experiência artística? Essa talvez seja a maior questão impertinente com que nos deparamos e para a qual, é óbvio, não temos resposta. Talvez, no entanto, tenhamos estabelecidos alguns caminhos de procura. Pelo menos foram caminhos que nos serviram na condução de nossa pesquisa.


Claudia Shapira propôs o tema "A Saga do Menino Falcão", sobre meninos atraídos pelo tráfico de drogas e que, em geral, morem antes de chegar à juventude. Começamos as improvisações com os atores e dramaturgos em sala de ensaio, mas logo essas improvisações ganharam a praça em frente à Escola.


A opção, de início, foi trabalhar com uma estrutura épica – as cenas como unidades autônomas. Imaginamos que o espaço naturalmente disperso da rua não oferecia condições ideais para uma organização dramática com unidade de ação, acumulação de tensões, diálogos excessivos e outros elementos que têm força maior quando em ambiente fechado. A dança, a linguagem com enorme poder concentrador, a acrobacia circense e a música fortemente rítmica foram outros elementos fundamentais que escolhemos para construir nosso teatro narrativo de rua.


A partir de improvisações sobre o tema, o núcleo de dramaturgia elaborou um canovaccio, um roteiro geral de ações, com discriminação de cenas, personagens e suas relações. O canovaccio revelou-se, nas improvisações, com uma complexidade inadequada ao espaço da rua. Foi refeito para ganhar forma essencial, pouco mais que um eixo estrutural, suficientemente amplo para abrigar cenas criadas pelos atores e se conjugar com a geometria da encenação. A dramaturgia sintetizou-se em uma ação fundamental, a morte violenta de um "menino falcão" e dois curtos depoimentos de cada um dos seis personagens, que de uma forma ou de outra estiveram envolvidos com o menino (traficante, mãe, pastor protestante, prostituta, namorada, policial), além de dois depoimentos do próprio menino morto. Os primeiros depoimentos de cada personagem representam o senso comum diante da morte sem importância de um pequeno traficante. Cada um se exime de culpa diante do fato considerado corriqueiro. No segundo depoimento, mais dramático, percebem que "estranhamente" a morte do menino mexeu fundo com cada um deles. Um arcabouço bastante amplo para comportar a continuada criação dos atores e da direção, mesmo depois de estreado o espetáculo, bem como para permitir improvisações e interferências que normalmente se estabelecem entre atores e público na rua.


A poucos meses da estréia continuamos com nossas indagações e sem nenhuma resposta fechada. Ao contrário, a pesquisa abre uma nova série de novas questões e provocações.


Uma das provocações, talvez a principal, seja que o teatro terá sempre importância social e cultural restrita enquanto não ganhar também as ruas e praças públicas e, ali, sentir o pulso da cidade e deixar-se contaminar por ele. Relegado apenas aos espaços fechados, inacessíveis ao grande público, fechado à nação, o teatro corre o risco de tornar-se entretenimento (ou experiência fundamental) de uma pequena casta cultural. A própria história do teatro ocidental e oriental nos indica, foi nas e das ruas e espaços abertos que o teatro extraiu sua força e sua forma fundamentais. O teatro para espaços fechados e, consequentemente, para público selecionado economicamente, tem uma história relativamente recente.


O teatro de rua não é uma invenção contemporânea como alguém mais desavisado poderia imaginar. E mais do que inventar o espetáculo de rua, talvez fosse mais interessante recuperar as formas tradicionais desse espetáculo, estudar sua forma e dar-lhe voz e forças contemporâneas. O que Mário de Andrade chamou de danças dramáticas brasileiras revelam, sob a pele do olhar folclórico, uma complexa forma dramatúrgica que que tem muito a nos ensinar sobre o espetáculo de rua. Da mesma forma a congada esconde, sob a capa de simples folguedo folclórico, uma estrutura épico-dramática impressionante, uma verdadeira saga sobre a resistência à colonização portuguesa na África – que não é inferior em profundidade e conteúdo dramático a nenhuma saga grega. Eram grandes espetáculos de rua, complexos, fortes do ponto de vista dramático e que manipulavam com eficiência as linguagens da música, da dança, da poesia narrativa, transitando entre os gêneros dramático e cômico, e imensamente populares.


Um olhar profundo e demorado sobre nossa própria tradição de manifestações teatrais de rua pode, com certeza, nos ajudar a responder as questões impertinentes que esse teatro nos coloca.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home